ONU alerta para "evidências irrefutáveis" na ligação entre guerras e fome no mundo
A ONU alertou hoje para as "evidências irrefutáveis" na ligação entre os conflitos armados e a crescente insegurança alimentar a nível mundial, após cerca de 295 milhões de pessoas terem enfrentado fome aguda no ano passado.
Num debate de alto nível do Conselho de Segurança da ONU focado na insegurança alimentar, a secretária-geral adjunta das Nações Unidas, Amina Mohammed, indicou que os conflitos armados geraram insegurança alimentar aguda em 14 dos 16 pontos críticos de fome em todo o mundo.
"Não pode haver paz onde as pessoas passam fome, nem segurança onde a fome alimenta os conflitos. As evidências são irrefutáveis (...). No ano passado, 295 milhões de pessoas enfrentaram fome aguda, mais 14 milhões do que no ano anterior", afirmou a adjunta do secretário-geral da ONU, António Guterres.
Também o número de pessoas que sofrem de fome catastrófica mais do que duplicou, atingindo 1,9 milhões, segundo dados da ONU.
Amina Mohammed enumerou uma série de locais devastados por conflitos e onde a fome se perpetua, como no Sudão, que é atualmente a maior crise de fome do mundo, mas também em Gaza, onde a fome foi confirmada em agosto e a situação mantém-se grave, assim como no Haiti, Iémen, Sahel e República Democrática do Congo, onde milhões de pessoas continuam presas num ciclo vicioso de fome e conflito.
"As fronteiras não oferecem proteção contra estas consequências. Vivemos num mundo interligado, onde os conflitos numa região enviam ondas de choque por todos os continentes. A guerra na Europa interrompeu as exportações de cereais, o que desencadeou crises alimentares em África, na América Latina e na Ásia. Os mercados entraram em pânico, a inflação disparou e milhões passaram fome", recordou, frisando que os mais pobres pagam o preço final.
A diplomata nigeriana-britânica lamentou ainda que a comida se tenha tornado numa arma de guerra, apontado especificamente para o caso de Gaza, onde admitiu existir uma tática deliberada de inanição, mas alertou também para a destruição sistemática dos sistemas agrícolas e de bloqueios à ajuda humanitária.
"E, numa espiral de morte, continuamos a investir em gastos militares em vez de acabar com a fome. (...) A relação entre fome e conflito é uma ameaça estratégica e existencial, devendo este Conselho tratá-la como tal", apelou.
Nesse sentido, a secretária-geral adjunta instou à ação em quatro frentes, a começar pela desobstrução completa ao acesso humanitário e ao respeito total pelos cessar-fogos em conflitos.
A diplomata defendeu igualmente uma maior fiscalização, através de um envolvimento que vá além dos Governos e que inclua organizações da sociedade civil que testemunham as condições no terreno, atores regionais que compreendem a dinâmica local e parceiros nacionais que têm a influência que a comunidade internacional não tem.
"Devemos trabalhar com todos eles para impulsionar a implementação e exigir responsabilização pelas violações", frisou.
Amina Mohammed apontou também para a criação de sistemas alimentares sustentáveis, em que os pequenos agricultores prosperem e as economias locais crescem.
Além disso, a ação climática é um pilar essencial tanto para a segurança alimentar, quanto para a paz, sublinhou a representante da ONU, pedindo ainda um investimento precoce na prevenção de conflitos.
"Optemos por construir um futuro onde os alimentos nunca mais sejam utilizados como arma, onde nenhuma criança passe fome por causa da guerra e onde os sistemas alimentares se tornem motores de paz, resiliência e esperança, em vez de vítimas de conflitos", concluiu.
O debate de hoje, liderado pelo Presidente da Serra Leoa, Julius Maada Bio, contou ainda com a presença da secretária-geral adjunta da ONU para Assuntos Humanitários, Joyce Msuya, do enviado especial para Sistemas Alimentares da União Africana, Ibrahim Assane Mayaki, e do economista-chefe da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Máximo Torero.
Num contexto mais geral sobre a fome no mundo, o representante da FAO indicou que nos dias atuais quase 673 milhões de pessoas ainda vão dormir com fome.
Em África, 307 milhões de homens, mulheres e crianças não têm acesso suficiente a alimentos, na Ásia, este número sobe para 323 milhões, enquanto na América Latina e nas Caraíbas, 34 milhões enfrentam a subnutrição.