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A Toupeira

O Economist em editorial considerou a Hungria como uma democracia falhada, e uma democracia só existente no papel

No romance do escritor britânico John le Carré, a “Toupeira” é um agente duplo soviético que serve no núcleo duro dos serviços secretos britânicos, mas, ao mesmo tempo, é na essência um agente do KGB e que serve os interesses da Rússia e da URSS. Mesmo após ser exposto, continuava a argumentar do interesse do UK em se unir à URSS e abandonar a NATO e a UE/CEE.

O romance lançado em 1974, foi inspirado em fatos da vida real pelo MI5, e recebeu aclamação da crítica pelo seu inteligente comentário social e político e ainda hoje continua a ser uma obra famosa do gênero de espionagem.

A “Toupeira” parece-me o epíteto adequado para exemplificar a postura de Viktor Orban, o quase perpétuo primeiro-ministro da Hungria. Ao mesmo tempo que governa com braços de ferro o seu país situado no centro da Europa comunitária, sistematicamente viola a Carta Europeia, os seus valores democráticos, os princípios de liberdade e tolerância bem como anulou a independência do poder judicial que agora é, na prática, só uma extensão do poder legislativo. Ao mesmo tempo é um aliado fiel da Rússia de Putin, boicota na medida do possível as iniciativas europeias de apoio ao povo ucraniano, propicia no seu país o ódio a Zelenski e aos ucranianos, mesmo sabendo haver uma numerosa comunidade húngara na Ucrânia. Apesar da Lei férrea contra imigrantes, a Hungria, tal como a Sérvia, parece ignorar que os russos, muitos pertencentes às suas oligarquias, procuram estas paragens para escapar às condicionantes da guerra.

Vamos por partes. Quando chegou ao poder, em plena crise económica de 2010, com um discurso disruptivo, com promessas de luta anti-imigração, leis draconianas contra a corrupção, contra a liberdade de orientação sexual, prometendo castigo exemplar ao crime, a defesa dos interesses nacionais acima de qualquer legislação europeia, seduziu os húngaros com o seu discurso populista. Cedo se aperceberam do grande erro cometido.

A vitória permitiu uma super-maioria de deputados, o que permite ultrapassar a constituição existente, em nomear juízes conotados com o Fidezs, o seu partido, favorecer a criação de grupos económicos ligados ao poder, que floresciam com o monopólio dos contratos públicos, em especial obras, grupos esses que rapidamente controlaram toda a comunicação social, que agora arreda das notícias as principais forças da oposição para além de “comprarem” o silêncio de muitos. É famosa a entrevista de um jornalista ao líder da oposição que preencheu o tempo repetindo inúmeras vezes a mesma pergunta, impedindo de passar eficazmente a sua mensagem política. Ao mesmo tempo favorecem as forças da oposição que dificilmente elegerão qualquer deputado e dão destaque aos pequenos partidos da oposição que criticam os grandes partidos dessa mesma oposição. Dividir para reinar…

A corrupção, curiosamente, tornou-se institucional, os contratos públicos são tudo menos transparentes e os fundos comunitários são utilizados fora do seu propósito, ao ponto da UE ter suspendido os fundos entregues à Hungria. A promiscuidade entre o Estado e esses grupos é amplamente denunciada mas a justiça nada parece fazer.

Bem ao jeito soviético, a perseguição aos opositores é atroz, como ficou exemplificado com uma manifestante italiana, que participou numa marcha antifascismo em Budapeste, entretanto foi presa e acusada de agredir e insultar manifestantes neonazis, tendo mesmo sido presente a tribunal. Foi algemada pelas mãos e pés, e depois foi-lhe colocada uma correia ao pescoço, situação que teve o repúdio imediato da UE e da primeira-ministra italiana Giorgia Meloni. De nada serviu, pois, Ilaria Salis foi condenada a 11 anos de cadeia efetiva, numa cadeia com registos prévios de tortura. E isto sem que a defesa tivesse acesso atempado aos vídeos supostamente incriminatórios. Este é só um exemplo. Muitos outros ex-deputados e ex-governantes húngaros acabaram presos acusados por esta mesma (in)justiça.

E este estado de coisas veio para ficar pois o Fidezs mudou a lei eleitoral, com nuances copiadas da Lei Russa, na qual os círculos eleitorais não respeitam os concelhos ou distritos, mas sim as votações prévias, o que permite ajustar as circunscrições para que o Fidezs obtenha 87 dos 106 deputados, beneficiando igualmente da fragmentação da oposição, o que ele mesmo, e a comunicação social por si controlada, estimulam e condicionam.

O Economist em editorial considerou a Hungria como uma democracia falhada, e uma democracia só existente no papel. Os eurodeputados, numa votação histórica, condenaram a Hungria, invocando o artigo 7 da Carta Europeia, abrindo portas a que a UE impusesse fortes penalizações à Hungria. Não é de estranhar que vozes na Europa tenham começado a propor a saída da Hungria do espaço comunitário, situação curiosamente levantada pela primeira vez, em Bruxelas, por António Costa, o que mereceu o imediato repúdio de Orban, mas rapidamente corroborado por outros líderes comunitários como a Letónia e a Finlândia, entre outros.

No romance e nos factos reais em que ele se inspira, a “Toupeira” acaba os seus dias em Moscovo sob a proteção do KGB e as mordomias do seu Politburo.