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O calor, esses dias grandes e mortíferos

Quando a temperatura subia ao ponto de fazer tremer o ar, os tanques de rega enchiam-se de miúdos e aqueles lugares calmos ganhavam vida como se fossem as piscinas azuis dos hotéis e dos ricos

As rodas dos carros deixavam marcas no alcatrão, enquanto grupos de miúdos brincavam aqui e ali, ao longo do caminho e saltavam para cima dos muros, onde centenas de lagartixas aqueciam ao sol das duas da tarde. Do poço, rodeado de canas, chegavam os gritos dos rapazes a saltar, uma massa de braços e pernas, de pele bronzeada e ainda mais castanha por causa da água.

Quando a temperatura subia ao ponto de fazer tremer o ar, os tanques de rega enchiam-se de miúdos e aqueles lugares calmos, onde viviam rãs e um manto verde de micro plantas cobria a superfície da água, ganhavam vida como se fossem as piscinas azuis dos hotéis e dos ricos. Uma multidão, que chegava dos lombos, das veredas e das casas que subiam encosta acima, saltava e gritava.

Nem todos sabiam nadar e, quase sempre, havia um pneu ou uma câmara de ar a fazer de bóia, mas volta e meia, e ao longo da minha infância, a alegria em redor dos poços era cortada pelo grito lancinante de uma mãe a chorar um filho morto por afogamento. A vida, no Laranjal dos anos 70, era um exercício difícil e inseguro; manter-se a salvo dependia muito da sorte.

E a sorte era uma coisa na qual a minha mãe não confiava. Também não era pessoa de acreditar em milagres ou no destino. Aquela senhora, que bordava à sombra da ameixeira amarela em casa do meu avô, preferia a lógica e por causa da lógica mandou-nos para as aulas de natação. Todas as manhãs, durante três semanas, descíamos até a igreja, o meu irmão à frente, ligeiro e rápido, e eu atrás, mais baixa e redondinha.

O meu irmão era quem levava o dinheiro, quem tinha a missão de tomar conta de nós, dele e de mim. Não sei o que faz tamanha responsabilidade à cabeça de um rapazinho de 10 anos, devia sentir um aperto no estômago, mas isso nunca o fez recuar. E fomos, os dois, com fatos de banho comprados de propósito, a aprender a nadar numa piscina das azuis, com professores, tal e qual como mandava a regra.

O fato de banho, a piscina e até uns balneários onde se podia tomar banho e lavar a cabeça. É difícil explicar como tudo isso nos impressionou, a nós, miúdos do Laranjal, onde o mais próximo de uma piscina era encher o lagar de casa ou chapinhar na lama das poças da ribeira. Ou arriscar mergulhar num poço coberto de plantas verdes e ver as rãs a saltar para a erva.

A aventura das aulas de natação incluía chegar, depois, a horas de apanhar o autocarro para a igreja e subir pelo caminho que ia dar o cemitério. Às vezes comíamos um gelado; outras vezes tocávamos às campainhas das casas grandes e bonitas e corríamos depois com medo de ser apanhados e ouvir adultos irados com a brincadeira, mas tocar as campainhas era tão divertido como fazer chamadas ao acaso para dizer disparates.

Esses dois verões, a saltar para uma piscina azul, que parecia tão grande e na verdade era apenas o tanque de aprendizagem da escola Francisco Franco, foram tão felizes e livres. Pela cumplicidade com o meu irmão, por me ter mostrado um mundo que não havia no Laranjal e por ter sossegado a minha mãe, que nos deixou correr pela fazenda sem medo de ser dela o grito lancinante a cortar pela vizinhança.