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Outros tempos

É frequente ouvir-se referir, à época em que vivemos, pela expressão “são outros tempos”, numa locução que comporta um sentido negativo.

Realmente, ao assistirmos, diariamente, à abertura dos telejornais, lermos cabeçalhos da imprensa escrita, blogues, ouvirmos debates, pareceres de especialistas, comentadores, jornalistas, políticos, influenciadores de redes sociais, conversas em família ou de café, e se não tivermos a capacidade, ou o cuidado, de procurar encontrar as devidas proporções, o legítimo enquadramento, a validação certa, ficamos com a ideia de que nunca houve tanta corrupção, ladroagem, compadrio, venalidade, desonestidade, desrespeito pela Lei e pelo bem comum, falta de seriedade, nepotismo, como nos tempos em que vivemos.

Governantes, políticos, juízes, empresários, figuras públicas, funcionalismo público, autarcas, administradores de grupos empresariais são apontados, diariamente, como autores, ou presumíveis autores, de actos no mínimo puníveis pela lei e pelos bons costumes, pela ética e pela moral.

Não afirmo que as situações referidas não sejam reais. Há, no entanto, uma circunstância que distorce a visão dos factos: a facilidade com que a informação circula actualmente. O eco imediato que qualquer notícia tem (verdadeira ou não…) nas mais diversas plataformas. Este facto tem um efeito…”multiplicador”.

A generalidade das pessoas facilmente é levada a acreditar que “já não há ninguém sério”, que são “todos iguais”, ignorando que todos os citados, por muito que possam ser suspeitos (ou mais do que isso), constituem uma ínfima parcela dos milhares de pessoas sérias que, diariamente, cumprem rigorosamente os seus deveres, nas mais diversas instâncias.

Além disso, fica a ideia de que “agora é que essas coisas acontecem”.

Tal ideia é de imediato infirmada se nos dermos ao trabalho de proceder a uma pequena pesquisa histórica.

Com facilidade ficamos a saber que, embora não conste o tema no código de Hamurabi, o primeiro código de leis da história, que vigorou na Mesopotâmia, no primeiro império babilónico, entre 1792 e 1750 a.C., desde remotas eras sempre o povo repudiou e combateu a desonestidade e a corrupção. No antigo Egipto, o Faraó presidia ao Poder Judiciário, auxiliado pelos vizeres, e prestava o juramento de punir os corruptos, os desleais e os falsos; na Grécia clássica já era punido por lei; de Roma chegou-nos um fragmento da Lei das XII Tábuas (451 a.C.) que cominava a pena de morte aos juízes que se deixassem corromper, assim como, mais tarde, a “Lex Julia repetundarum”. A corrupção também era crime punido pelo direito bárbaro; na Idade Média, considerava-se a corrupção dos funcionários em geral e a dos juízes em particular sob o nome de “baratteria”.

No entanto, foi no Direito Romano que o crime de corrupção teve um tratamento pormenorizado, com o objectivo de evitar a decadência moral.

Em Portugal, a partir do século XV, surgiram as Ordenações: a Afonsina, a Manoelina, a Sebastiânica e, por fim, a Filipina (iniciada por Filipe I e promulgada, por Filipe II de Portugal, no ano 1603). O crime de corrupção está contido no título LXXI do Livro V, e as penas poderiam chegar, desde a perda do cargo e pagamento de multa, até à pena de morte.

Uma lei de 1314, por exemplo, estabelecia as penas aos que tentavam influenciar o julgamento das causas, recorrendo às peitas (suborno), “para corromper e impedir o andamento legal do pleito” (Ordenações Afonsinas).

Por tudo isto, facilmente se percebe que a situação não tem a ver com os tempos actuais, tem a ver com... a condição humana.