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24 horas num retrato

O desafio é simples. Uma caneta, uma folha de papel e um turno de 24 horas num Serviço de Urgência. Nem importa onde, ou quando. Importa, sim, captar o relevante, o que nos faz refletir.

24 horas é uma viagem longa. Daria para voar da Europa à Austrália. No caso será na porta de entrada mais fácil do Serviço de Saúde.

Os utentes começam a chegar. Primeiro, os que programaram vir com antecedência. Munidos de relatórios, de exames da privada e do saco de medicamentos. Trazem dores crónicas, provavelmente em lista espera para alguma doença degenerativa, que aguarda cirurgia há anos. Procuram alívio imediato para um sofrimento recorrente. Procuram compreensão. Querem explicações e prognósticos.

E para estes, muitos aposentados, desempregados ou de baixa, se lhes dermos isso, o dia está ganho. Não sabem, nem querem saber, das falsas urgências. O seu sofrimento genuíno e, supostamente, não atendido cabalmente em outros locais de saúde, esta é a única prioridade.

Depois vão surgindo os sinistrados de trabalho. Manifestam-nos a incompreensão do patronato pelas suas limitações. Como se pudéssemos ser todos polícias a correr atrás de ladrões desde os 20 aos 65 anos. Ou limpar 25 quartos de hotel. Ou dezenas de fileiras de blocos num dia na obra. Diz-me um, “o patrão só quer lá quem está capaz para tudo”. Avalia-se, trata-se e medica-se. A reabilitação fica em espera para as consultas externas. Mas fico com a impressão de que, muitas vezes, é preciso ouvir mais do que falar. E a pedagogia é extensível ao patronato, ou então que nos dissessem o que fazer com aqueles que “já não estão capazes para tudo”?

À tarde, a avalanche dos acidentes desportivos escolares. Há dias que chegam às dezenas. Perguntamos, não haverá alguma prevenção a melhorar? Ou reformar as práticas? Depois os idosos que simplesmente caem à noite e tem fraturas complexas, muito por culpa da osteoporose e sedentarismo. Os acidentes de viação, que só não são mais graves pelas boas aventuranças do Santo Airbag e companhia. Os piores acidentes acabam por ser aqueles com duas rodas e meia cautela. E os desportos radicais da moda, feitos por quem os experimenta sem o treino adequado e a maturação desejável. E os turistas que procuram a adrenalina e o vigor de outrora, em levadas e veredas, mas que muitas vezes acabam por ser traiçoeiras.

Mais à noite, surge o elefante na sala… o Álcool. O patológico, todos os dias. O social, mais ao fim de semana. Em ambos, inebria-se o perigo, lidam-se com as consequências.

Com as horas, a sala está mais suja. Já nem se nota a cadeira torta e a mancha da parede com anos. E a avaria no ar condicionado. O cansaço acumula-se e esta não é uma viagem solitária. A interação com colegas é uma constante. Desde o geralmente solícito clínico do centro de saúde, humilde e preocupado com o utente que conhece há anos. Ao “superespecialista”, por vezes perdido na altivez da sua indiferença. Ao distante e quase anónimo colega em telemedicina, numa qualquer cidade continental. O utente certamente repara no trabalho dos auxiliares e administrativos, mas, creio, o que verdadeiramente agrega este serviço de saúde são os enfermeiros. Pela proximidade ao utente, pela continuidade dos cuidados ao longo dos turnos, pelos erros que nos alertam, pelo diálogo mais fácil com os utentes. A viagem só acaba bem se todos estiverem a remar em entreajuda.

Há linhas comuns. A fragilidade que todos experimentamos quando debilitados. A necessidade constante de humanismo no sistema. A capacidade de superar as limitações materiais e humanas. A correta gestão de expectativas. A viagem é longa, mas acontece a cada dia, e em todos os hospitais. Boa viagem!