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A apropriação social e económica da investigação na Madeira

Regresso de forma efémera à minha intervenção pública no DN para uma breve retrospetiva da I&D na Madeira motivada pelo assinalar de uma oportunidade histórica para a região.

Primeiro um ponto de situação com base nas estatísticas. Em 10 anos o peso da investigação e desenvolvimento na RAM passou de pouco mais 13m€ para cerca de 22m€ (um aumento de 75%). Em percentagem do PIB passou de 0,38% para 0,52%, ultrapassando os Açores e o Algarve e disputando com o Alentejo a posição de 4.ª região do país (Lisboa, Norte e Centro estão noutra divisão entre 1,4% e 1,9%). Para este esforço contribui decisivamente a criação de instituições regionais com capacidade para atraírem e executarem fundos europeus. Basta verificar que com pouco mais de 500 mil euros (o que orçamento regional paga) estas instituições foram capazes de alavancar a quase totalidade do investimento institucional na região. Este investimento atrair e fixar talento, promovendo o emprego qualificado. Segundo os dados de 2020 mais de 560 pessoas (4.1% da população ativa) dedicam a sua atividade à investigação. A isto chamava Mariano Gago a apropriação social e económica da investigação. Talvez por essa razão os nossos políticos comecem a dar atenção a esta área. Para além do sopro de modernidade, já são muitas famílias que reconhecem a importância da investigação nas oportunidades para os mais jovens e qualificados.

Essencial para esta mudança foi o desenvolvimento dos centros avaliados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Esta avaliação internacional permite aferir e credibilizar o trabalho dos grupos de investigação. Não basta juntar uns amigos e criar um centro qualquer é necessário que esse esforço seja reconhecido pelos pares. Na última década a região passou a contar com vários centros ou polos de unidades de investigação com massa crítica relevante e classificação de excelente (a mais alta atribuída pela FCT). O ITI/LARSyS que já era excelente manteve um polo na Madeira liderado pelo Prof. Pedro Campos, tal como o grupo liderado pelo Prof. Mikhail Benilov que passou a polo do IPFN – ambos são unidades e laboratórios associados do Instituto Superior Técnico (IST). O CQM, neste leque o único totalmente sedeado na Madeira, passou a excelente pela liderança e persistência do Prof. João Rodrigues. Finalmente o recém-criado MARE-Madeira liderado por João Clode que congrega a grande maioria de doutorados nas ciências do mar. Os restantes centros, ou não têm massa crítica, ou não conseguiram elevar a classificação acima do Bom.

É essencial manter os apoios e incentivos para que na próxima década possam evoluir e melhorar. Atribuir financiamento a grupos ou projetos que não têm a garantia de qualidade é um risco político arbitrário que terá muito provavelmente más consequências no futuro. Abandonar dinâmicas inclusivas e participadas de definição da estratégia de investigação para o próximo programa-quadro é também um sinal preocupante. Os projetos do Madeira 2014-20 foram determinantes para os resultados conseguidos na última década.

Se a trajetória do peso e qualidade da investigação na RAM parecem promissoras convém perceber que impacto poderão ter na economia para serem sustentáveis. A caracterização temática da despesa é aqui um excelente indicador, até porque as regiões são muitos diferentes. Nos Açores existe uma forte dependência do sector institucional (Universidade e Governo) que representa 84% da despesa, ficando 16% para as empresas. Na Madeira a repartição é muito equilibrada com 55% para o sector institucional e 45% para as empresas. Em termos temáticos, na Madeira as tecnologias representam 39% (30% nos Açores), e os recursos naturais e ambiente (incluindo o mar) 30% (59% nos Açores) e a saúde e bem-estar 17% (15% nos Açores). A interseção entre a massa crítica, as temáticas e a qualidade da investigação são determinantes para a apropriação social e económica da investigação. Um grupo excelente em física dos plasmas ou em nano-materiais terá sempre grandes limitações em conseguir ter impacto económico numa região ultraperiférica. Um grupo emergente em biologia marinha ou germoplasma será sempre relevante para aumentar o conhecimento sobre a biodiversidade e a ecologia das ilhas. Como 80% da biodiversidade da Europa está nas regiões ultraperiféricas, cada mergulho, missão de drone, ou saída de barco é suficiente para publicar vários artigos científicos. Já transformar esse conhecimento em valor económico é muito difícil.

Restam assim poucas áreas onde a investigação pode ter um impacto transformador na economia de uma região ultraperiférica como a nossa. A recente aprovação da agenda eGames Lab (https://egameslab.pt/), liderada cientificamente pelo ITI/LARSyS, é um exemplo do impacto económico da investigação. Esta agenda resulta de um investimento continuado em design digital e entretenimento iniciados na parceria com a Universidade de Carnegie Mellon. Já tinha dado origem a um unicórnio a Mambu.com que está avaliada em 5b€ e que nasceu na Madeira, mas infelizmente se desenvolveu em Berlim. A Agenda eGamesLab foi a única da RAM e das mais bem classificadas a nível nacional por um painel internacional. Representa um investimento de 30m€ para os próximos três anos, a maioria em empresas e entidades regionais, mas que conta com parceiros nacionais e internacionais de grande relevo como a Amazon, Google, Dell, Playstation e Enjinstarter. O apoio dado pela C.M. Funchal a esta iniciativa foi determinante para o seu sucesso. A região conseguiu atrair fundos competitivos por mérito e que só podem ser aplicados nesta tipologia de despesa. Felizmente (ou lamentavelmente dependendo do ponto de vista) não é possível fazer estradas, rotundas ou casas com verbas do PRR que têm como objetivo transformar a economia com base na investigação. Fazer demagogia com temas desta natureza não ajuda ninguém, tal como pensar que investir em edifícios, mesmo que seja para investigação, é preparar o futuro. Basta ver o que aconteceu com o Parque de Ciência e Tecnologia da Madeira para perceber que a lógica é a mesma já esgotada há décadas.

Colocar as empresas em ligação com investigação interdisciplinar de ponta, numa agenda inovadora e próxima dos cidadãos num novo centro criativo da cidade é uma lufada de ar fresco. Uma estratégica centrada nas pessoas, em áreas inovadoras e na requalificação de infraestruturas viradas para a população. Esta estratégia é aliás a que está a ser seguida pelo ITI/LARSyS em Lisboa no Hub Criativo do Beato. Trazer os centros de investigação para junto da economia e da população é fundamental para que a investigação saia das torres de marfim e tenha impacto. Apostar em áreas que alargam as oportunidades a jovens das áreas criativas é criar oportunidades e qualificar a economia. Fica aqui desde já o desafio e a disponibilidade para que Lisboa e Funchal possam criar sinergias para capitalizar esta oportunidade única.

Termino dando os meus sinceros parabéns ao meu colega Pedro Campos que liderou cientificamente esta proposta. A mudança de parte do ITI/LARSyS para Lisboa implicava que a equipa residente na Madeira fosse capaz de definir uma estratégia própria e isto foi conseguido com brilho e sem provincianismo – bravo! Saudar a visão de Pedro Calado e da sua equipa integrando-a no projeto do Matadouro, bem como os membros do GR na área das finanças e economia pelo apoio à iniciativa. Como dizia o saudoso Mariano Gago é importante “não ceder à tentação da nossa eterna pequenez”.

Boas Férias.

PS: Aproveito para deixar umas recomendações de leitura e música para o verão: “How the World Really Works” de Vaclac Smil. Para quem vive assustado com o presente e o futuro “Doughnut Economics” de Kate Raworth para uma nova visão da economia. “A Máfia dos Bombardeiros” para quem pensa que as máfias científica são iguais às outras. Três discos muito bons. “How Is It That I Should Look at the Stars” da Weather Station, “Blue Weekend” dos Wolf Alice e “A Beginner’s Mind” do grande Sufjan Stevens”.

* Professor Catedrático e Presidente do Departamento de Engenharia Informática Instituto Superior Técnico