Crónicas

A sina

Não sei dizer se foram felizes, mas nunca duvidei do amor, mesmo que, na maior parte do tempo, não tenha sido como nas novelas e nos romances

Um dia, ali à entrada do mercado, uma cigana pediu cinco escudos para ler a sina à minha mãe, seriam 10 para as duas mãos, mas, por ser avessa a gastar, ficou-se por uma, que contasse o que lá estava escrito. E a mulher viu um casamento contra a vontade da família, o nascimento de um rapaz e depois de uma menina e, para a deixar mais feliz, prometeu tanta riqueza que haveria de morrer longe, noutra terra.

A minha mãe era nova e solteira, a cigana devia contar a mesma história a todas, mas uns tempos depois o meu pai veio pedir a mão ao meu avô. O casamento, que se fez sete anos mais tarde, não foi do agrado das minhas tias, nem da minha avó. Eu nunca percebi bem o motivo, mas sei que, todas as vezes que se levantava uma discussão, o meu pai lembrava a ofensa.

Eu também não entendia o rancor. A minha mãe tinha enfrentado as irmãs, o temperamento torcido da minha avó e tinha dito que sim ao homem bonito que, um dia, desceu os degraus da entrada para oficializar o namoro. E, mesmo na meia-idade, já derreada pela vida, ainda o olhava com amor; e perdoava as desfeitas e os copos para lá da conta às sextas-feiras.

Às vezes, quando a tristeza pesava, repetia que, daquele casamento, tinham nascido dois filhos bonitos, tal e qual como o pai. “Sabes? Era o rapaz mais bonito do sítio quando eu o conheci. Era alto, forte e alvo, parecia um actor de cinema”. E os olhos brilhavam por detrás dos óculos como se ela, a Celina, a quarta filha do Francisco do Meia, não merecesse tanto.

Era magra, morena, de cabelo preto e baixinha, também era muito inteligente, pensava depressa e era capaz de fazer conversa em qualquer lugar, mas esses atributos valiam pouco no Laranjal dos anos 50. E, de uma certa maneira, quando o meu pai encontrou coragem para ir falar ao meu avô, mostrou que, afinal, a rapariga trigueira, que começava a ficar fora da idade de casar, podia agradar a um rapaz.

Mas o casamento começou atribulado e atravessou 30 anos de brigas e muitas reconciliações. A minha mãe costumava dizer que o meu pai sabia “meter uma pessoa no coração”, que era impossível não perdoar, desculpar. E ela perdoava, desculpava, voltava a ficar triste sem nunca perder aquele brilho no olhar, mesmo na meia-idade, já cansada, com rugas e cabelos brancos.

Não sei dizer se foram felizes, mas nunca duvidei do amor, mesmo que, na maior parte do tempo, não tenha sido como nas novelas e nos romances. Lembro-me que a maior preocupação da minha mãe, antes de morrer, era o meu pai, o que seria dele, do homem que amava. E quando morreu, vi como desabou, como tive de o amparar no funeral, como foi difícil tudo, suportar o meu luto e o dele numa casa que nos parecia vazia para sempre.

Eu acabara de perder a minha mãe; o meu pai perdera a mulher que enfrentara a família por amor. E nisso a cigana

acertou.