Crónicas

As memórias. Todos os dias e sem falta, logo pela manhã

Embora se promova e diga o contrário, o direito ao esquecimento é um privilégio

2009 não foi um ano por aí além, mas foi numa tarde de sábado desse ano sem história que decidi abrir uma conta numa rede social. Fiz de impulso, ainda o Facebook era um lugar onde as pessoas tratavam de uma quinta imaginária e trocavam galinhas entre si. Não pensei muito e tratei de encontrar umas fotografias minhas; fiz uns álbuns com viagens e gatos. Era o que havia no computador e eu queria parecer bonita e viajada.

Também queria ter aquele golpe de asa para escrever todos os dias, misturar a graça e a inteligência num estilo rápido e meter a meio uns emojis, mas nunca fui de pensamento veloz e não tinha ritmo para responder ao “em que estás a pensar?” Fiquei-me pelas fotografias sempre com a sensação de que lhes faltavam leveza, não conseguiam ter aquele toque de quem está a beber um copo na beira da piscina no fim de um dia de Verão.

Era evidente que me faltavam talentos e, ainda assim, mantive-me por lá. Descobri uns colegas de faculdade que não via há décadas e fui espreitar. Devem ter feito o mesmo comigo que, depois de uma certa idade, queremos ver os estragos que o tempo fez aos outros e queremos companhia para iniciar a viagem do envelhecimento. E, claro, encontrei desconhecidos, pessoas que conhecia de vista e todos os dias passámos a encontrar-nos.

Um ‘like’ na fotografia dos filhos ou no desabafo contra o governo e, em pouco tempo, havia grupos para combinar jantares de finalistas do liceu de 1987 e da turma de comunicação da faculdade. Fui a vários e saí com a sensação de ter partilhado a mesa com estranhos. A última vez que nos tínhamos visto não passávamos de miúdos e, num abrir e fechar de olhos, as nossas conversas eram sobre filhos, quem os tinha e quem não tinha, os empregos e as casas. E este nó cego só se desfez nos bares de música revivalista que, ao som da pop dos anos 80, o tempo, de facto, não passa.

A rede foi mudando, ficou mais negra, mais cruel e parece de uma ingenuidade abrir uma conta como fiz em 2009, mas eu continuo por ali. Leio as notícias por lá, vejo o horário das aulas do ginásio e todas as manhãs o algoritmo lembra-me o que andei a fazer nestes últimos 13 anos. A vez em que fui nadar e lá aparece uma fotografia comigo de fato de banho verde alface a nadar de costas ou quando me deu, nem eu sei bem porquê, para transcrever o início dos livros que mais gostei.

Talvez tenha querido encontrar um estilo, mas estas memórias são como mexer em gavetas e encontrar fotografias antigas e tralha guardada, coisas que estão enfiadas debaixo de mais tralha e que por alguma razão decidimos deixar assim. No Facebook não é assim, volta uma vez e outra vez como que a sublinhar que, de facto, nada desaparece da Internet. E, embora se promova e diga o contrário, o direito ao esquecimento é um privilégio.