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Querem mesmo a paz?

Quando pomos de lado opções ideológicas, considerandos geopolíticos e fervores nacionalistas, conseguimos perceber, com enorme clareza, que o conflito na Ucrânia só tem causado aumentos insuportáveis nos custos de vida, desemprego galopante, crises de refugiados, perdas inaceitáveis de vida, crimes vergonhosos de guerra e uma sensação global de desespero e medo. Face a isso, muito cidadãos questionam porque é que os regimes ocidentais (supostamente mais livres, mais abertos, melhor informados e com um infindável acesso a vias diplomáticas e canais de incentivo político) se têm focado tanto no apoio económico e militar a um dos lados do conflito, em vez de apostarem na diplomacia.

Por outras palavras, se os custos desta guerra (os humanos e os económicos) estão a ser tão cruelmente elevados, então porque é que se insiste a dar cada vez mais armas e dinheiro a um dos lados, acreditando, ilusoriamente, que é através de mais sofrimento e de mais destruição e de mais crise e de mais morte que se vai colocar fim ao sofrimento, à destruição, à crise e à morte que já imperam?

Se olharmos para o dilema do ponto de vista racional, o mesmo não faz sentido. Aliás, a história da humanidade demonstra que a rota da paz duradora nunca foi construída em cima de corpos caídos. Por muito que haja quem glorifique a guerra e celebre os mortos da guerra como exemplos de heroísmo, provavelmente, esses, nunca souberam o que é perder um filho ou uma filha para violência de uma bala ou de uma bomba. É fácil falar da glória da guerra quando não é o sangue dos nossos que é derramado. Mas o que a história do mundo indica é que a única guerra em que a violência trouxe fim à violência foi, porventura, a Segunda Guerra Mundial, porém, até nesse caso, o fim veio à custa de seis anos que testemunharam as mais indescritíveis atrocidades e cinquenta milhões de vidas perdidas

Na Ucrânia, perceber a paz que foge também não é possível do ponto de vista da racionalidade. Se formos por aí, nunca compreenderemos porque é que crianças, idosos, mulheres e tantas outras vidas continuam a ser ignoradas, como se estivéssemos num joguinho doentio de soldadinhos de chumbo. Porém, a situação torna-se clara quando olhamos para o conflito do ponto de vista dos interesses que são por ele claramente beneficiados. Quando procedemos assim, percebemos porque é que a paz na Ucrânia é algo que, na realidade, não interessa a muita gente.

Não interessa à indústria de armamento, quase toda ela sediada no Ocidente, para quem o conflito e todo o negócio da guerra são fontes desejadas de ganhos inalcançáveis em tempos de paz.

Não interessa aos países exportadores de petróleo, para quem o aumento de vendas que têm vindo a registar desde o início das sanções à Rússia significa mais dinheiro para déspotas árabes e africanos gastarem em carros, mulheres fúteis, jóias, palacetes, viagens e nas campanhas internas de ‘limpeza’ aos opositores dos regimes.

Não interessa às indústrias de retalho e de alimentos, que têm vindo a registar lucros-recorde à custa dos aumentos de preços que oportunamente passaram a praticar, usando a guerra como desculpa.

Não interessa à indústria automóvel, que encontrou no conflito a justificação mais-que-perfeita para regular produções e aumentar preços para valores nunca antes vistos.

E, sinceramente, pelo andar da carruagem, não conseguimos perceber se a paz na Ucrânia interessa assim tanto aos Estados Unidos e à Europa, pois a mesma não só oferece uma distração útil aos problemas internos de uma América sem rumo e de uma Europa cada vez mais pobre, mas também potencia as condições para que as chefias ocidentais procurem isolar a Rússia, na esperança de que, assim, consigam, em Moscovo, por via de um eventual golpe militar de descontentes, a mudança de regime pela qual salivam, mas que nunca foram capazes de instigar. Mas talvez esquecem-se que, na complexa história russa, os golpes internos não têm gerado regimes ‘amigos’ do Ocidente. A Revolução de 1917 é um bom exemplo disso.

Todavia, para perceber tudo isto, é preciso se dar ao trabalho de ler além do que é dito nos telejornais, de ir além dos floreados retóricos, de perceber a História e de aceitar que, quem dela não aprende, repetirá os seus erros. E tudo isso dá muito trabalho! Muito mais simples é vir para as televisões gritar “Slava Ukarini!”, ao mesmo tempo que se esfrega as mãos de felicidade ao som das moedas que caem como corpos, no saquinho dos cifrões.