Meandros da sociedade

A infeliz tragédia aconteceu, um dia junto às portas do nosso emblemático mercado dos lavradores. Uma infelicidade que resultou em menos dois sem-abrigo, na nossa cidade.

Não, não é esta a solução, que qualquer cidadão quer, para ver resolvido um problema social da sua cidade.

Não sabemos quem são, nem de onde vieram.

Serão culpados?

Culpados ou não, eles proliferam por entre ruas, becos e vielas, deixando a sua marca por onde passam.

Recordo um dia, quando eu caminhava numa das ruas mais movimentadas da nossa cidade e, entre caras conhecidas e desconhecidas, que eu ia encontrando surge uma cara, que pertencia a um corpo do sexo masculino, de aspeto vagabundo, subia a rua em sentido contrário ao meu.

Parou à minha frente e falou-me assim:

- Olhe senhor, eu sei que sou um parasita, que ando aqui no meio da sociedade, mas, sou sobretudo, um ser humano e preciso de comer. Tenho fome, podia dar-me algo para eu matar a fome?

As palavras ditas e, as não ditas, disseram-me, muita coisa.

Os seus olhos escuros, bem arregalados a presenciar os meus gestos, naquela expectativa do que, poderia sair de mim, diziam tudo.

Despachei-o e, ele num muito obrigado, seguiu o seu caminho.

Fiquei meditando nas suas palavras, pensando ao mesmo tempo, que podia ser minha a sua ânsia, se por acaso, tivéssemos compartilhado o mesmo berço.

Depois disto, isentei o sentido de culpa, que a minha mente alimentava sobre essa gente.

A semente que cai em terreno fértil, tem a sorte de germinar logo de seguida e dar bons rebentos e consequentemente dar bons frutos, o mesmo não acontecendo com aquela, que cai em terreno infértil. Poderá germinar, mas não dará bons rebentos, estes precisarão de mais cuidados para que possam dar bons frutos.

A nenhuma semente, lhe é dado o privilégio de escolher o terreno onde vai cair.

No mesmo piso que pisamos, uns tropeçam outros não. A fragilidade está no corpo e não no piso e, há tropeções que atiram os fracos para o charco da sociedade. Uma tábua de salvação, bem estruturada por essa mesma sociedade, pode ser a libertação dum afogamento em causa.

Há infortúnios adquiridos no berço, mas há outros, que não o são. São frutos adquiridos mais tarde, pelos vícios, pela preguiça e outros atos.

Só que, nem todos querem agarrar-se à tábua de salvação, que possa ser posta ao seu dispor e preferem, o afundamento no charco da sua liberdade podre, em vez de flutuarem em águas límpidas, num cumprimento de regras.

Não podemos deixar ninguém, ao sabor do seu querer doentio, perturbar aqueles que cumprem com os seus deveres de cidadão e, que precisam de liberdade de ação no cumprimento dos mesmos deveres.

Certo é, que não podemos arrastar ninguém pela lei da força, mas sim, pela força da lei.

Se a lei é frágil, tornemo-la consistente, fazendo com que, aqueles que necessitam de apoio, o aceitem, querendo ou não, criando-se ao mesmo tempo, condições humanas, para o seu refúgio e, só assim se construirá um mata-borrão, que sugará esse borrão social, que mancha a face, de uma das cidades mais limpas da Europa.

Paninhos quentes, podem aliviar, mas, não curam chagas.

José Miguel Alves