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Dos hinos e cânticos

Recordam-se de vuvuzelas? Apenas doze anos atrás, no Mundial da África do Sul, o seu barulho estava a fazer a vida negra tanto aos jogadores como a espectadores e telespectadores, até ao ponto de terem sido banidas pela FIFA em todos os mundiais subsequentes e pela UEFA em todas as competições europeias. Depois da mania da vuvuzela, um “instrumento” que, aliás, está bastante enraizado nesse país, ter sido subjugada, todos nós conseguimos ouvir outra vez aquilo que é considerado o ingrediente inalienável de jogos de futebol: os cânticos e os hinos com os quais os adeptos fazem os estádios vibrar.

Presentes em todos os jogos, fazendo parte de identidade e servindo como veículo de identificação dos adeptos com os seus clubes, estes trechos gritados ou cantados assumem um significado especial quando elevados para o nível de equipas nacionais. Inundam as rádios, lembram as vitórias passadas e pressagiam as futuras. Servem como um “apelo às armas” coletivo e dão asas à procura da glória desportiva.

Existem centenas, amadores e profissionais, e não têm qualquer correspondência nem dependem da qualidade do jogo: a gente vai cantando (ou berrando), expressando tanto o seu entusiasmo como o seu desagrado, mas nesse momento é unida e parte dum todo que é reconfortante ao nível social mais básico, pois reforça a sensação que todos gostam de sentir – a de pertença e integração na coletividade. Quem está no meio desta multidão coordenada deixa de se preocupar com a sua identidade e preocupações individuais e liga-se a todos na qualidade de adepto.

Há quem considere a tradição destes cânticos como uma personificação da tradição folclórica orgânica e viva, atravessando as gerações do mesmo modo que a tradição da transmissão oral das antigas canções. Os cânticos de futebol surgiram já no final do século 19 e desde o seu início utilizaram tanto motivos melódicos novos como as canções populares da época mas servindo-se também da música clássica, desde o célebre “Canon” de Pachelbel, à “Pompa e circunstância” de Elgar e “La donna è mobile” de Verdi.

O caráter dos cânticos varia de país para o país: na Alemanha é geralmente positivo quanto à equipa, na Itália e América do Sul assume uma intensidade emocionante e até ameaçadora, nos Estados Unidos, empresta tipicamente um pouco de várias culturas dos adeptos doutros países, e na Inglaterra utiliza o humor das palavras duma maneira específica.

Infelizmente, mas não infrequentemente, estes cânticos assumem uma forma derrogatória e ofensiva, utilizando sons e textos que manifestam racismo e intolerância. Nestas situações, os adeptos sentem-se mais seguros e protegidos, para, no meio duma multidão “sem rosto”, vociferarem os seus preconceitos e fobias sem medo de repercussões (e a sua opção de fazer isso sem precisarem de dar a cara demonstra que sabem bem que o que fazem é moralmente condenável).

Muitas vezes os textos e as coreografias, bem ensaiadas, têm a ver também com mensagens e polarizações políticas, sociais e territoriais. Isso é mais notório entre as equipas cujos adeptos tradicionalmente nutrem inimizade com o objetivo (in)consciente de encontrar a válvula de escape das suas frustrações de mais variadas origens através das rixas organizadas. Mas aí já entramos no hooliganismo…

Por isso, se alguém afirmar que “a coisa secundária mais importante do mundo” existe num vácuo e não deve ser “contaminada” pelas condicionantes sociais e políticas, basta ver o exemplo que decorre nestes dias. Afirmar o contrário seria uma patente atitude de cinismo e branqueamento da realidade.

Oxalá todos os cânticos e hinos dos clubes tivessem (ou voltassem a ter) o propósito simples do torcer para o desporto! Contudo, Roma não foi construída num dia e o nosso mundo está cada vez mais complexo.