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Pobreza, esta é a nossa urgência

O aumento do custo de vida e o fim dos apoios sociais ameaçam tornar ainda mais frágil a situação de milhares de famílias

Numa sociedade democrática, a pobreza configura uma situação de violação de direitos humanos fundamentais. Primeiramente, por negar às pessoas atingidas os recursos indispensáveis à satisfação de necessidades humanas básicas. E, em segundo lugar, porque priva os pobres das condições necessárias ao exercício dos seus direitos civis e políticos. Neste entendimento, trata-se de um problema de cidadania.

A pobreza na nossa sociedade não é uma fatalidade, porquanto os recursos materiais, humanos e de conhecimento, já alcançados, são suficientes para que todos tenham acesso à satisfação de necessidades humanas consideradas básicas segundo os padrões correntes. Se persiste a pobreza – e até em alguns casos se agrava – é porque a economia funciona desfocada da prioridade de satisfação das necessidades das pessoas dotadas de menor poder de compra e não atende, como deveria, ao critério do emprego de recursos humanos disponíveis. Se a pobreza continua a existir, é porque os frutos do desenvolvimento e do progresso material, que se vão alcançando, não se repartem com justiça e equidade por todos os sectores da comunidade nacional. Se a pobreza continua a existir é porque a sociedade não dispõe, ainda, dos indispensáveis mecanismos para proporcionar a todos uma igualdade de oportunidades no acesso a bens essenciais e a serviços básicos de saúde, educação, habitação ou segurança.

Considero a pobreza como uma violação de direitos humanos. Reconhecer esta situação deve levar à vontade política de o afirmar inequivocamente e à implementação de mecanismos institucionais que façam valer, em todas as circunstâncias, o direito a não ser pobre, incluindo a criação e implementação de vias apropriadas para reivindicar este direito e sancionar o respectivo incumprimento quando tal se verificar.

Cabe ao Estado, a nível central, regional e autárquico, o papel determinante na luta contra a pobreza através da adopção de medidas, programas e projectos direccionados para prevenir as causas geradoras da pobreza e para minimizar as suas consequências. Tais medidas, programas e projectos existem no nosso País. Contudo, no conjunto, têm revelado níveis de eficiência muito aquém do desejável, mesmo quando comparados com os resultados obtidos por mecanismos similares noutros países do espaço comunitário. Há, pois, que investir na qualidade técnica destas medidas, programas e projectos e exigir dos mesmos que apontem objectivos claros, seleccionem os meios adequados para os atingirem aos menores custos e prevejam avaliações em função dos resultados efectivamente alcançados em termos de diminuição da incidência e intensidade da pobreza em todo o território nacional.

Segundo as metas contidas na Estratégia Nacional de Combate à Pobreza 2021-2031, aprovada há dias em Conselho de Ministros, está assim claramente enunciado um propósito de atacar uma das especificidades portuguesas que se prende com o facto de os trabalhadores representarem 32,9% dos cerca de 1,6 milhões de pobres que estão obrigados a viver com menos de 540 euros líquidos por mês.

Para o conjunto da população, o documento propõe ainda a redução da taxa de pobreza monetária para 10%, o que, a concretizar-se, equivalerá a retirar 660 mil pessoas da situação de pobreza. Este objectivo, é quase o dobro do previsto no Plano de Acção para o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, por via do qual a UE se propôs até 2030, reduzir o número de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social em 15 milhões, no universo de 91 milhões de pessoas.

Declinando para a realidade portuguesa, este objectivo pressupunha a saída de cerca de 300 mil pessoas daquela situação, incluindo 120 mil crianças. Mas também no tocante aos mais novos as metas estabelecidas parecem ser um pouco mais ambiciosas. A ideia anunciada para os próximos 8 anos é conseguir retirar 170 mil crianças da pobreza, reduzindo assim esta realidade para metade. Em 2020, e segundo o INE, eram 19,8% as crianças e jovens tolhidos pelo risco de pobreza ou exclusão social (indicador que conjuga pobreza monetária e privação material severa).

A superação da pobreza e das suas causas passa por fazê-las visíveis aos olhos do mundo.

Recordo, a propósito, a situação por mim vivida em 2007 aqui na Região quando assumi (nos termos que me eram impostos pelos valores éticos e morais) a defesa intransigente deste problema na Madeira bem como o seu combate imprescindível.

É isto que queremos fazer hoje, porque é uma grave preocupação do nosso trabalho diário, no terreno de quem não terá alguém ao seu lado que ajude a equilibrar as contas, ou alguém com quem partilhar as angústias de todos os dias, de quem vive numa labuta diária para não perder o emprego, para esticar o dinheiro até ao final do mês, para pagar todas as despesas, ou até para ter dinheiro para comer ou dar de comer.

A erradicação da pobreza não beneficia apenas as pessoas que hoje se encontram em situação de pobreza aliviando-lhes as sequelas da privação, mas constitui também uma mais valia para as pessoas não pobres e para a sociedade no seu todo que ganha em aproveitamento de recursos humanos potenciais, em coesão social, em segurança e em qualidade de vida. A luta pela erradicação da pobreza releva, pois, de uma opção colectiva acerca da sociedade em que desejamos viver.

Dar voz e poder aos pobres na resolução dos seus problemas é uma condição para o sucesso das estratégias de luta contra a pobreza. Este passo deve ser dado desde já, através do incentivo à participação dos utentes dos serviços sociais públicos e de instituições de solidariedade social na avaliação dos mesmos. Há, porém, que ir mais longe e fomentar as associações que integrem pessoas de grupos sociais mais fragilizados, dando-lhes oportunidades de poder e participação na resolução dos seus problemas e maior visibilidade junto das respectivas Autarquias e outros poderes públicos. A este propósito, merece referência especifica a situação dos imigrantes e a das populações que vivem em bairros de habitat degradado ou em bairros sociais que carecem de apoio para que se organizem e aproveitem sinergias ao trabalho em rede.

A pobreza e a exclusão social são vividas por pessoas concretas e num determinado contexto sócio-cultural pelo que, se por razões operacionais, se têm de criar tipologias, não deixam de ser muito heterogéneas, as situações dos pobres bem como as suas aspirações e os seus recursos. Assim sendo, só através de medidas e projectos que lhes são dirigidos se pode encontrar as respostas mais eficientes. Em particular, é essencial dar mais poder às mulheres, que continuam a ser discriminadas socialmente e no mercado de trabalho. O maior envolvimento e responsabilização dos pobres favorece, ainda, o combate à subsídio-dependência, evitando que a pobreza se prolongue por tempo demasiadamente longo, sem fazer apelo às suas competências e à participação dos pobres para saírem da situação em que se encontravam.

O aumento do custo de vida e o fim dos apoios sociais ameaçam tornar ainda mais frágil a situação de milhares de famílias o que tornará 2022 como um ano de que crise social agravada.

O problema maior na nossa sociedade, tendo presente a situação actual de pobreza generalizada no nosso país, é a mudança de mentalidades sobre a pobreza que a nova estratégia exige. Sem se acreditar que é possível a erradicação da pobreza e que os pobres são vítimas de um sistema gerador de desigualdades é difícil conseguir-se alcançar tão nobre desígnio.

Por último quero concluir com uma palavra de solidariedade para com os pobres do Mundo. O século XXI iniciou-se com a formalização de um Pacto Mundial que visava reduzir significativamente a pobreza no Mundo até 2015. A avaliação feita a meio deste período mostrou lacunas e défices de concretização que importa superar nos próximos anos, de modo que sejam efectivamente honrados os compromissos assumidos pelos Estados e a Humanidade, no seu todo, possa encarar o futuro com maior confiança.