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Do sentido da política à política sem sentido

Os pobres não podem ficar à porta, porque é deles o centro da Igreja. Disse há dias Frei Bento Domingos e com razão

Segundo Annah Arendt “o sentido da política é a Liberdade”. A sua simplicidade e a seu força conclusiva não residem no facto de ser tão antiga como a própria questão expressa no título deste artigo – que resulta decerto da incerteza e é inspirada pela desconfiança - , mas na existência da política enquanto tal. Hoje, esta resposta não é, na realidade, nem evidente por si própria nem imediatamente plausível, o que se revela no facto de a questão hoje não ser simplesmente uma pergunta sobre o sentido da política, como a que as pessoas punham outrora, quando começou a emergir de experiências que eram de natureza não política, ou até mesmo anti-política. A nossa pergunta actual resulta das experiências bem reais que tivemos com a política nos nossos tempos e pelo desastre ainda maior que causado pela política, nos ameaça. Por isso, a nossa questão é muito mais radical, mais agressiva e mais desesperada: continuará a política a ter ainda qualquer sentido?

Se, esperarmos milagres devido ao impasse em que o nosso mundo se encontra, esta expectativa de maneira nenhuma nos barra, no domínio político, o seu sentido original. Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse domínio – e em nenhum outro – temos, na realidade, o direito de esperar milagres. Não porque acreditemos supersticiosamente em milagres, mas porque os seres humanos, saibam-no ou não, enquanto são capazes de agir, são também capazes de realizar, e constantemente realizam, o improvável e o imprevisível. A questão de sabermos se a política tem algum sentido faz-nos inevitavelmente, no preciso momento em que desemboca numa crença em milagres – e onde poderia desembocar senão aí? -, retomar a questão do sentido da política.

Tanto o descrédito da política como a questão do sentido da política são muito antigos, tão antigos como a tradição da filosofia política.

A política, dizem-nos, é uma necessidade absoluta para a vida humana, e não só para a vida da sociedade, mas também para o indivíduo. Porque o homem não é auto-suficiente mas depende dos outros na sua existência, deveram ser tomadas medidas que afectem a existência de todos, uma vez sem essas medidas a vida em comum seria impossível. A tarefa, o fim que se propõe a política é salvaguardar a vida no sentido mais amplo. A política torna possível, para o indivíduo, buscar os seus próprios fins, quer dizer não ser incomodado pela política – e pouco importa que esferas da existência são as que se presume que a política deverá salvaguardar, ou saber se o seu propósito é, como os gregos pensavam, tornar possível a uns poucos dedicarem-se à filosofia, ou, segundo o entendimento moderno, garantir a vida, os meios de existência e o mínimo de felicidade aos muitos. Acresce que, como Madison outrora fazia notar, uma vez que a nossa preocupação é a vida em comum de homens e não de anjos, as medidas se referem à existência humana só podem ser tomadas pelo Estado, que detém o monopólio da força bruta e impede a guerra de todos contra todos.

A mais importante de tais ideias, ideia que continua a fazer forçosamente parte do nosso conceito de política e sobreviveu assim a todas as viagens e transformações históricas é sem dúvida a ideia de liberdade. A ideia de que a política e a liberdade estão ligadas uma à outra, tornando a tirania o pior dos regimes políticas e, na realidade, uma forma de governo anti-política, abriu caminho avançando em termos de pensamento e acção no interior da cultura europeia até uma data recente.

Vem tudo isto a propósito das eleições legislativas no próximo dia 30 de Janeiro em Portugal. A crise pandémica continua a subtrair-nos a capacidade colectiva de responder bem aos sinais de que a austeridade, desta feita por causa de um putativo risco inflacionário, ameaça não se ter esgotado.

A pobreza e a desigualdade apesar do desenvolvimento científica e técnico e das lutas sociais e suas organizações, parecem confirmar um dito do Evangelho: “Pobres sempre sereis entre vós” como se essas situações fossem uma fatalidade. Não era nada o sentido de afirmação evangélica como mostra o capítulo 25 do Evangelho de Mateus. Somos todos, de modos diferentes, responsáveis pela situação em que se encontra o mundo dos marginalizados, das pessoas empobrecidas e abandonadas. É a situação daqueles que o Evangelho chama nossos irmãos, que o Papa Francisco retomou na encíclica Fratelli Tuti e que a Fundação do mesmo nome quer que se torne um laboratório do futuro.

O problema, presente do país é ter pessoas que precisam e não têm ajuda. O RSI só chega a 37% das pessoas em pobreza extrema.

Dos 300 mil beneficiários do RSI em 2007 apenas 15% se mantiveram como beneficiários em 2017: apenas 45 mil pessoas. Isto diz tudo quando o país tem hoje mais de 2 milhões de pobres.

De facto o espaço político, enquanto tal, realiza e garante tanto a liberdade de todos os cidadãos como a realidade do que os muitos discutem e atestam. Ao optarmos por interagir com os poucos e não com os muitos, convencidos entretanto de que falamos livremente com os outros sobre alguma coisa produz não realidade mas engano, não a verdade mas a mentira.

Os números simples mostram a dimensão do problema em Portugal: Portugal empobreceu sistematicamente face aos países mais ricos entre 2002 e 2013, e neste último ano era comparativamente tão rico como em 1989, depois recuperou, entre 2014 e 2019, mas tão pouco que ficou comparativamente mais pobre do que em 2010 ou em 1990; a pandemia trouxe novo colapso, fazendo-nos voltar a 1988. Isto é trágico.

Trata-se evidentemente de comunicar. E alguns “marcadores” determinantes estão bem à vista. Mas quando o objectivo é abordar os pontos mais precisos dos programas – como vai operar-se a concretização das políticas propostas -, para dissipar a ambiguidade e a falta de clareza, para “repolitizar” os desafios não se arriscarão estes a perderem-se no sentimentalismo? E a desenvolverem-se na exibição de uma bondade colectiva – que todos os humanistas, de direita ou de esquerda podem praticar?

Já em 1891, a encíclica Rerum Novarun (Coisas Novas) do Papa Leão XIII, que aliás se opunha às ideias socialistas ateias que atacavam a propriedade privada, denunciava os excessos do liberalismo, defendia o estabelecimento do salário “justo” e condenava “a miséria e a pobreza que pesam injustamente sobre a maior parte da classe operária”. Este apelo ao acordar das consciências suscitará os movimentos do catolicismo social e do sindicalismo cristão, que terão como objectivo “melhorar a sorte dos trabalhadores”.

E hoje, em vésperas de eleições, é como se a Igreja nos dissesse: pára e semeia a esperança mesmo no seio da pobreza. Aproxima-te dos pobres e semeia a esperança.

Nesses dias agitados pela Campanha “Legislativas 22”, voltou-me à mente aquilo que costumava repetir D. Tonino Bello, um bispo próximo dos pobres e ele mesmo pobre em espírito: Não podemos limitarmo-nos a esperar, devemos organizar a esperança. Se a nossa esperança não se traduzir em opções e gestos concretos de atenção, justiça, solidariedade, cuidado da casa comum, não poderão ser aliviados os sofrimentos dos pobres, não poderá ser modificada a economia do descarte que os obriga a viver à margem, não poderão florescer de novo os seus anseios.

Em última análise o mundo humano é sempre produto do “amor mundi” do homem, um artifício humano cuja imortalidade potencial está sempre submetida à mortalidade dos que a constroem e à natalidade dos que nela entram.

Compete-nos, especialmente a nós cristãos, organizar a esperança – é uma linda expressão, esta de Tonino Bello: “Organizar a esperança!”. Isto é, traduzi-la diariamente em vida concreta nas relações humanas, no compromisso sociopolítico. Segundo a dinâmica que, hoje, nos pede a Igreja, não é só com esmolas que se organiza a esperança.

Queremos um programa mais completo e eficaz para as eleições que se aproximam?

É de facto, uma linda expressão esta de organizar a esperança. A sua poética não é contemplativa. Depende do que fazemos, dia a dia, nas relações humanos, no compromisso sociopolítico e no cuidado da Casa Comum.

Os pobres não podem ficar à porta, porque é deles o centro da Igreja. Disse há dias Frei Bento Domingos e com razão.