Crónicas

Sorrisos Escondidos

Dei por mim ainda há dias a pensar que existem pessoas no meu local de trabalho, que entraram na empresa em plena pandemia a quem nunca vi a cara toda

Dei por mim ainda há dias a pensar que existem pessoas no meu local de trabalho, que entraram na empresa em plena pandemia a quem nunca vi a cara toda

Há uns anos o fotógrafo francês Réhahn decidiu viajar pelo Vietname montado na sua mota. As suas aventuras, o contacto com a população, a visão cultural e a perspectiva histórica que encontrou foram a base para o desenvolvimento de um projecto fotográfico extremamente rico e interessante. Foram 7 longos anos em que percorreu o País de uma ponta a outra e em que se focou nas pessoas e nas emoções que estas transmitiam através dos sorrisos. Só depois de criados laços e do contacto com os locais é que sacava da câmara e captava o momento, sempre com a autorização dos mesmos. A série “Hidden Smiles” (ou sorrisos escondidos, em português) foram o tema do seu grande sucesso que ainda hoje percorre o Mundo e o tornou famoso. Pessoas que invariavelmente colocavam a mão à frente da boca na hora da fotografia, uns pela timidez, os mais velhos por terem perdido os dentes pela força da idade mas que não lhes tirava a força da boa energia que transmitiam e que se notava através da união entre os olhos e a contração dos músculos que acabavam por deixar a nu os cantos da boca. Ficou conhecido como o fotógrafo que capta “almas”.

O que Réhahn estaria longe de imaginar é que passados uns anos uma violenta e trágica pandemia nos roubaria, a todos, os sorrisos, entregues a máscaras, que nos seguem para todo o lado e que onde quer que vamos pouco deixam escapar acerca do nosso estado de espírito ou das nossas emoções. Na realidade, talvez só no futuro e olhando para trás, consigamos perceber o real impacto que isto trouxe às nossas vidas, nomeadamente no estado emocional mas também nas nossas feições e na nossa pele. A incapacidade de nos conseguirmos comunicar através das expressões que fazemos, que normalmente se representam através da junção entre os olhos e a boca tornam-nos mais tristes e distantes mas também menos calorosos, quando o afeto, o carinho ou a reprovação são tão bem demonstrados pelo rosto. As mensagens que transmitimos sem o poder da fala para mentir, faz-nos muito mais sinceros, mais genuínos e puros e sem elas mais facilmente nos entregamos ao carácter ( ou à falta dele ).

Dei por mim ainda há dias a pensar que existem pessoas no meu local de trabalho, que entraram na empresa em plena pandemia a quem nunca vi a cara toda. A imagem que tenho delas são uns olhos enfiados entre cabelos mais ou menos penteados e uma máscara azul bébé. Igual retrato tenho do novo funcionário da padaria na esquina da minha rua ou da pessoa que me atende na frutaria, um pouco mais à frente. São momentos a que antigamente dávamos tão pouca importância por serem tão adquiridos e que ao dia de hoje mudaram repentinamente a forma como interagimos uns com os outros. É impressionante a falta que nos faz a magia de um sorriso, seja ele mais tímido e comedido ou expansivo e as feições que nos dizem sempre algo mais.

Num Mundo em que encontramos cada vez mais pessoas enganadoras, falsas e mentirosas, o regresso a esse teste do algodão torna-se cada vez mais decisivo para o bem da humanidade. Enquanto isso no Afeganistão regressam as burcas que cobrem a cara das mulheres na totalidade. Mais do que nunca sabemos o quanto é importante podermos ter a liberdade de andar livres e de cara destapada. Que regresse rápido esse dia em que todos sem excepção nos possamos atrair por um sorriso e apaixonar por um esgar de felicidade.