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Casos de fome disparam em Brasília, onde miséria e política andam lado a lado

Foto EPA/Joedson Alves
Foto EPA/Joedson Alves

Os casos de fome dispararam em Brasília, capital do Brasil e uma das cidades mais ricas do país, onde a miséria e a política andam lado a lado, apesar de entidades governamentais serem acusadas de negligenciar a população carenciada.

Quem dá detalhes da situação é a equipa do "Domingo Solidário", projeto criado por um grupo de amigos, que semanalmente distribui comida e produtos de higiene pelos sem-abrigo da capital brasileira.

Num domingo chuvoso de novembro, Bárbara de Oliveira, uma antropóloga de 31 anos que integra o projeto solidário, levou a agência Lusa a acompanhar a rotina de distribuição das "marmitas", embalagens de plástico com a comida feita horas antes pelo seu grupo de amigos e que acabou por ser a única refeição que muitos dos sem-abrigo fizeram naquele dia.

O primeiro ponto de distribuição foi num setor comercial a apenas dois quilómetros da Esplanada dos Ministérios, onde se encontra a sede do Governo brasileiro, num forte contraste entre poder e pobreza.

"Começámos a fazer a ação em março e dá para ver o quanto o número de pessoas em situação de rua tem crescido semanalmente. Há cada vez mais gente sem-abrigo. Temos relatos de professores, que tinham empregos fixos, mas que os perderam e estão na rua, com a sua família e com tudo o que conseguiram colocar na mala", detalhou Bárbara.

Todos os domingos, o grupo cozinha entre 70 e 85 marmitas de comida, com alimentos frutos de doações, mas que nunca são suficientes: "Sempre falta comida. Se distribuíssemos 100, continuaria a não ser suficiente", garantiu a jovem antropóloga.

"Com certeza esta é a única refeição que algumas pessoas fazem durante o dia. Existem, por exemplo, algumas ocupações de rua que têm uma estrutura, que conseguem cozinhar, mas muita gente não tem como fazer isso. Se não receberem esta comida, não têm como se alimentar", explicou.

A fome atingiu 19 milhões de brasileiros durante a pandemia de covid-19, segundo dados de 2020 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).

No ano passado, o Brasil viu ainda disparar o número de pessoas com insegurança alimentar grave ou moderada: 27,7% da população estava incluída nesse grupo, ou seja, cerca de 58 milhões de brasileiros corriam o risco de deixar de comer por não terem dinheiro, de acordo com investigadores universitários.

Entre o primeiro trimestre de 2019 e janeiro de 2021, a população pobre do Distrito Federal, unidade federativa que engloba Brasília, cresceu de 12,9% para 20,8% -- o maior aumento percentual do país, segundo um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE).

O levantamento considerou que estão na faixa da pobreza as famílias com rendimentos de até 450 reais por mês (71 euros), por pessoa.

Brasília registou ainda a maior inflação do país em agosto: 1,4%, contra 0,87% da média nacional. Os dados são do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que analisou dados de 16 das 27 capitais estaduais brasileiras.

Segundo o levantamento, a taxa é a mais alta para o mês de agosto na capital do país desde 2000, e a situação repetiu-se nos meses seguintes, com outubro a fixar a inflação em Brasília em 1,25%.

Nesse sentido, o custo médio da chamada "cesta básica" - composta por produtos alimentares, como arroz, feijão ou óleo - , cresceu 3,88% em setembro na capital do país, o maior aumento nacional, segundo o Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Socioeconómicas (Dieese).

Atualmente, o valor médio da cesta básica de alimentos na capital brasileira está em 617,65 reais (97,50 euros), um valor que parte da população brasiliense não consegue suportar.

Exemplo disso é Joel Chagas, de 52 anos e que vive na rua há uma década, que relatou à Lusa que só se consegue alimentar através de doações, como as que são oferecidas pelo "Domingo Solidário".

"O número de pessoas a viver na rua aumentou muito nos últimos tempos. Da pandemia para cá, esse número só cresceu e há muitas pessoas passando necessidades. Há cada vez mais crianças. Antigamente víamos uma ou outra pessoa aqui, nesta rua, e agora está cheia", disse Joel Chagas, que no passado foi soldador, mas que teve de deixar de trabalhar por questões de saúde.

"Notamos sempre o aumento nos preços dos alimentos, até porque às vezes compramos para cozinhar aqui na rua. Agora só conseguimos comer através de doações. Tenho conseguido fazer três refeições por dia, mas há cada vez mais pessoas doentes na rua, que esperam um auxílio do Governo, que simplesmente cruza os braços. Eu já tive mais peso, mas fui emagrecendo, enfraquecendo, e hoje nem tenho mais dentes devido a esta fraqueza", relatou o brasileiro.

O que Joel Chagas não entende é como é que o Brasil, "um dos maiores produtores de gado do mundo", tem os preços dos alimentos tão elevados.

"O Governo Federal tem culpa na inflação, lógico que tem. O Brasil é culpado por tudo. Aqui a gente planta, colhe e exporta, somos dos países que cria mais gado. Não entendo como é que produzimos tanto e se come tão caro neste país. É uma vergonha para nós, que somos brasileiros", disse, indignado, o sem-abrigo.

Contudo, o principal alvo das críticas é o Governo do Distrito Federal (GDF), liderado por Ibaneis Rocha, que é acusado de não amparar a população mais vulnerável da região.

"O Governo estadual cortou os nossos subsídios, há quatro meses que eu não recebo o benefício de vulnerabilidade e calamidade pública. Dizem que é um benefício por causa da pandemia, mas que calamidade é essa que esquecem do povo em situação de vulnerabilidade? Prometeram-nos casas e até agora nada também. O GDF está dormindo, está a deixar-nos na mão", lamentou o antigo soldador.

Bárbara de Oliveira acusa ainda o governador Ibaneis Rocha de "atrapalhar mais do que ajudar", denunciando que o executivo estadual tem recolhido pertences dos sem-abrigo, para que eles deixem de ocupar setores comerciais da cidade.

"Os governos, quer estadual, quer federal, não dão nenhum apoio e ainda atrapalham o que as outras pessoas e organizações tentam fazer. A própria população de rua denuncia casos em que o governador enviou camiões e retirou-lhes todos os pertences. Levaram cobertores, tendas, e isso foi feito no período de frio. Levam todos esses pertencentes para obrigar as pessoas de rua a irem para ouros lugares e saírem dos setores comerciais. É assim que o governador resolve as coisas", criticou Bárbara.

"Tínhamos arrecadado 50 cobertores, entregámos aos sem-abrigo, e dois dias depois disseram-nos que tinha sido tudo levado. Tiraram-lhes panelas, roupa, tudo. O Governo não só não ajuda, como ainda atrapalha", frisou a jovem.

A Lusa entrou em contacto com a Secretaria de Comunicação do GDF para pedir esclarecimentos, mas não obteve resposta.