Crónicas

Têm o seu Dia!

Foi preciso o Vaticano vir a ser habitado por um “franciscano”, para que os famintos e deserdados do planeta viessem a ter o seu Dia... Não é mais um “Dia Mundial” (DM) entre outras evocações anuais mais ou menos anódinas ou abstrusas (há um DM do Atum, e um DM da Sanita, por exemplo): o Dia Mundial dos Pobres é uma criação da Igreja Católica (celebrado no mundo desde 2017) e quer ser um apelo às consciências e ao compromisso cristão para o exercício de um olhar outro — próximo, crítico, solidário — sobre o fenómeno da pobreza, afinal tão próxima e tão distante, gritada à esquina da nossa rua, ou escancarada assepticamente na distância dos telejornais, face escandalosa de um mundo injusto, onde muitos morrem por comer demais, e milhões sucumbem por não ter que comer...

“Ninguém é tão rico que não precise do outro; ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar”: este é o sentido da ida do Papa a Assis numa visita “em nome da simplicidade”, com um programa que visa sublinhar o modo propriamente cristão de lidar com o tema: não apenas o discurso sobre a pobreza, mas a atenção, o cuidado, a proximidade, a ajuda — o olhar do pobre não clama por teorias, mas grita, de novo e sempre, na nudez imediata da miséria, a pergunta radical: quem é o teu irmão? É por isso que, ao chegar esta manhã à grande Basílica da Úmbria, Francisco terá à sua espera um grupo de 500 pessoas vindas de várias partes da Europa num simbólico “abraço dos pobres”, que irão entregar ao Papa o manto e o bordão de peregrino, a indicar que todos vieram como peregrinos colher em Assis a palavra e o testemunho do “Poverello”. Será uma oportunidade mais para incitar à “globalização da fraternidade”, um sonho do Santo e deste Papa, que tantas vezes tem sublinhado que a pobreza não é uma fatalidade imposta ao destino humano, mas o resultado de muitas “escolhas egoístas” e de políticas que não respondem ao “clamor dos pobres”, mas apenas patrocinam a “economia que mata”. E, no entanto, o pobre está mesmo à nossa frente, gerindo farrapos de vida para sobreviver, urge respostas concretas de pronto socorro, sem tempo para esperar pelas políticas dos políticos que, de novo e uma vez mais, querem “inaugurar”, agora sim, o verdadeiro combate à pobreza... Faz-me lembrar um choro antigo de almas piedosas, com muita pena dos pobrezinhos em África, mas ignorando a fome e o frio dos pobres da mesma rua, ou da casa ao lado...

A atenção ao pobre será sempre a prioridade primeira, porque ele é “carne e osso” aqui mesmo ao pé da porta: eis a linha de combate de instituições como a Caritas, e outras semelhantes, que desenvolvem um trabalho gigantesco de “ajuda ao próximo”. Mas, essa linha de ação, fundamental, não pode iludir a vertente racional e crítica que devemos ter face à pobreza enquanto fruto “sistémico” de políticas imorais, donde estão ausentes quaisquer preocupações de humanidade e de justiça. O recente estudo publicado sobre a pobreza em Portugal e sua caraterização, evidencia um longo défice estrutural na criação de políticas – educação, economia, emprego — que levariam o país a superar gradualmente o seu endémico atraso. Um país pobre gera pobreza; uma justa redistribuição dos bens e combate à exclusão implica produção de riqueza e, politicamente, uma vontade honesta de promoção de justiça social. Mas é um combate em que vai ficando difícil acreditar.

E, no entanto, aí mesmo, o pobre!