Crónicas

Da ilha para a ilha – rumo ao Curaçau

FOTOGRAMAS

No dia 26 de dezembro de 2015, fui convidada a almoçar em casa da Dona Eugénia, em Niterói, Brasil. Eugénia Fernandes, natural da Fajã dos Padres, tinha migrado na década de 1950 para aquela cidade vizinha do Rio de Janeiro que então acolheu uma expressiva comunidade madeirense. Aí, comi bacalhau regado não a vinho tinto mas a cerveja gelada para fazer face ao estonteante calor que se fazia então sentir naquele período natalício, e não só provei como me foi oferecido um delicioso bolo “Madeira” de mel de cana feito pela própria Dona Eugénia. Entre conversas com a própria, sua filha Márcia e netos, já todos nascidos no Brasil, foi-me mostrada uma imagem de um familiar numa venda tipo bar/mercearia no Curaçau. A imagem datava de finais da década de 1940 ou inícios da de 1950, e confesso que até então praticamente desconhecia a existência daquela ilha ao largo da costa da Venezuela pertencente às Antilhas Holandesas. Mais desconhecia portanto que este foi um expressivo destino de migração madeirense num contexto relativamente específico que se dá sobretudo entre os anos de 1929 e 1951. No portal “aprenderamadeira.net” temos uma elucidativa explicação do fenómeno através das palavras do historiador Alberto Vieira - subitamente falecido em 2019, então coordenador do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA), e que deixou um importante legado para a pesquisa das memórias e mobilidades madeirenses: “(…) o que atraiu maior número de madeirenses para este destino foram as vagas emigratórias que se sucederam às duas guerras mundiais. O Brasil continuou a ser um dos destinos preferenciais da maioria dos madeirenses, mas as opções alargaram-se a outros mercados recetivos à mão-de-obra. Nos anos de 1929 e 1951, tivemos a emigração orientada pela companhia Shell – Curaçaosche Petroleum Industrie Maatschappij (CPIM), que permitiu a saída de mais de 4000 madeirenses. Muitos destes deram, depois, o salto para a Venezuela, que se tornou num novo destino, conjuntamente com o Canadá, Austrália, América do Sul e as colónias portuguesas de Angola e Moçambique. A proximidade da Venezuela e de Trinidad relativamente a Curaçau permitia que ambos os destinos aparecessem, lado a lado, na publicidade da imprensa madeirense e, assim, o referido salto de muitos madeirenses para a Venezuela quando esta se tornou no destino de eleição. Esta informação publicitária de percursos comuns acontece entre 1938 e 1951.”

Há um “momento” fotográfico particularmente expressivo do rumo de madeirenses a esta outra ilha, pessoas na sua maioria originárias da Ponta do Sol e do Estreito da Calheta, atraídas pelas hipóteses de trabalho na refinaria petrolífera. Data de março de 1944, e atesta esse momento que antecede ao embarque. A fila de homens (controlada pelas autoridades) que seguramente aguarda o embarque, impressiona pela sua extensão, expressivamente sugerindo (se assim o imaginarmos) o impacto que essa mobilização de força de trabalho masculina deve ter provocado nas localidades de origem. De lado podemos ver alguns transeuntes ou familiares curiosos com a situação ou que terão ido para se despedirem sem grandes certezas de uma reunião. Esses homens envergam provavelmente o seu melhor ou único fato, situando-se num desses momentos de prelúdio ao que aludia a semana passada como rito de passagem e simbólico de rutura com a vida passada, a vida conhecida até então. Na maioria dos casos, a vida de uma ilha dentro da ilha (o universo da pequena localidade rural dentro da Madeira), que rumava para uma outra ilha, com o poético nome de Curaçau. Ali, de acordo ainda com Alberto Vieira, “tinha-se uma imagem dos portugueses e em especial dos madeirenses, de pessoas dedicadas que aceitavam todo o tipo de trabalho, mesmo os mais duros, daí o apelido de mules, a designação popular para mulas ou burros de trabalho”. Muitos deles não voltariam para a Madeira, rumando à Venezuela e ao Brasil findo o vínculo de trabalho (de dez anos) com a petrolífera. E foi precisamente ao Brasil que rumou o cunhado da Dona Eugénia, sendo em parte sobre essa mobilidade e presença através de fotografias que falaremos nos próximos textos.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.