Madeira

“No princípio era a ilha” assinalou início da poesia de Tolentino Mendonça

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A poesia pelas mãos de José Tolentino de Mendonça começou com o verso “No princípio era a ilha”, sob o título “A infância de Herberto Helder”, marcando o início de uma vida literária agora multipremiada.

O seu “princípio como poeta” deu-se naquele momento, como o próprio explicou numa entrevista dada ao jornal Público em 2012: “Foi o meu primeiro encontro poético com a palavra. Mas já antes escrevia. Foi muito importante a figura da minha avó materna, uma contadora de histórias. Ela sabia alguns romances orais de cor.”

O primeiro livro, “Os Dias Contados”, sai em 1990, embora já antes publicasse no DN/Jovem, como lembrou o próprio Diário de Notícias, após o anúncio do Papa, em 01 de setembro, da nomeação de Tolentino como cardeal, republicando um dos seus textos, assinado com o pseudónimo de Tiago Hulssen, “21 anos, estudante universitário, Lisboa”.

“No princípio era a ilha/embora se diga/o Espírito de Deus/abraçava as águas”, pode ler-se em “A infância de Herberto Helder”, poema no qual Tolentino escreveu ainda: “Não sabia que todo o poema/é um tumulto/que pode abalar/a ordem do universo agora/acredito”.

O também madeirense Herberto Helder foi uma “grande descoberta” para o até aqui arquivista e bibliotecário do Vaticano, quando o leu pela primeira vez aos 16 anos: “Foi como se pudesse ouvir a música do mundo. Sentir que todas as coisas estavam vivas. Um lado orgânico do real. E aqueles advérbios que nele dão mais do que qualquer adjetivo”.

“Escolhi fazer a tese de licenciatura em Teologia sobre a saudade de Deus em Ruy Belo. Foi uma aprendizagem. Os poemas iam acontecendo, não sei bem se à maneira do nadador que suprime a respiração ou daquele que finalmente respira”, escreveu, em 2015, para o Jornal de Letras, estabelecendo assim as suas duas principais referências poéticas.

Desde então, a escrita de Tolentino de Mendonça tem sido elogiada pela crítica e premiada por múltiplos júris: venceu o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes, em 2015, com “A noite abre os meus olhos” e, no ano seguinte, voltou a conquistar um galardão da Associação Portuguesa de Escritores, neste caso dedicado a crónicas, com “Que coisas são as nuvens”.

Em 2015, em Roma, foi-lhe atribuído o prémio literário Res Magnae, pelo ensaio “A mística do instante - o tempo e a promessa”, enquanto cinco anos antes ganhou o prémio Fundação Inês de Castro com “O viajante sem sono”, tendo dito, aquando da entrega da distinção, que “o poema é uma inevitabilidade da experiência humana”.

Numa entrevista para a revista Ler, em 2009, Tolentino de Mendonça elaborou sobre uma frase sua muitas vezes replicada, segundo a qual “A poesia é a arte de resistir ao seu tempo”.

Questionado sobre esta ideia, o padre e professor respondeu que “a poesia é uma ciência de resistência”. Face à insistência do entrevistador, José Tolentino de Mendonça respondeu que a poesia “é a única maneira de iluminar [o tempo em que se vive]”.

“Se o pau de fósforo não se risca, não se acende. A poesia é uma tensão. A poesia é uma turbulência, é um tumulto, é um sobressalto. Nesse sentido, caminha contra o seu tempo. Caminha contra os ventos que sopram. Acentua uma determinada solidão. Esse é o seu contributo ao seu tempo: olhá-lo de mais longe”, afirmou.

Tolentino de Mendonça editou em 2018 “Elogio da sede”, pela Quetzal, que reuniu os textos “que serviram de guião às reflexões conduzidas pelo poeta, teólogo e sacerdote português junto do Papa Francisco e dos cardeais da cúria romana”, durante o retiro de Quaresma daquele ano.

O seu mais recente livro de poesia, “Teoria da Fronteira”, pela Assírio & Alvim, data de 2017, e esteve nomeado para o prémio literário do Correntes d’Escritas.

Em 2016, na conferência de abertura daquele encontro literário na Póvoa de Varzim, Tolentino de Mendonça disse que gostaria, um dia, de ver o silêncio ser classificado como Património Imaterial da Humanidade.

“Um sonho meu, que aqui partilho, é ver um dia o silêncio declarado Património Imaterial da Humanidade. Porque nós declaramos património as grandes construções, o canto, todas as coisas associadas à expressão, e esquecemo-nos que o silêncio também é uma forma de expressão extraordinária e que, no silêncio, experimentamos muitas vezes uma comunhão, uma proximidade, que nenhuma palavra do mundo é capaz de nos fazer sentir”, disse, então.

Tolentino de Mendonça foi elevado a bispo em 28 de julho de 2018, numa cerimónia no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, recebendo simbolicamente a antiga sede episcopal de Suava, no norte de África.

Pouco mais de um mês depois, a 01 de setembro, assumiu a responsabilidade pelo Arquivo Secreto do Vaticano e pela mais antiga biblioteca do mundo, a Biblioteca Apostólica, com a preocupação de preservar “um grande tesouro da Igreja e da humanidade”.

A partir do próximo sábado, junta-se aos outros atuais cardeais portugueses José Saraiva Martins, Manuel Monteiro de Castro, Manuel Clemente e António Marto, os dois últimos com direito de voto num eventual conclave para a eleição do Papa, tal como sucederá com Tolentino Mendonça.