Crónicas

A vida tinha outros planos

Tenho saudades, nunca deixei de ter e, às vezes, sonho que estás por aqui ainda, que conversas comigo e dás conselhos

Eu pensei que teria tempo, muito tempo, que haveria de ir contigo ao médico, que te teria por cá até seres mesmo velhinha, assim com o cabelo em tons lilás, era da ampola da farmácia onde também compravas Tokalon e os medicamentos. Tenho saudades, nunca deixei de ter e, às vezes, sonho que estás por aqui ainda, que conversas comigo e dás conselhos, sonho com a tua inteligência e acordo com um aperto no peito, dizem que é lá que guardamos a alma.

Faz agora anos que tivemos o último dia da mãe juntas, foi um Maio chuvoso e levei-te um vaso com flores. Tu gostavas de flores, mas andavas cansada e triste. O pai, o Duarte e eu, as nossas angústias davam para preocupações, mais a vida de casa e os bordados. Tu cuidavas de todos ainda que a casa andasse sempre entre a ordem ao domingo e o caos durante a semana. A culpa também era minha, que não era uma fada do lar.

Se tivesses tido tempo, haveria de explicar que não me treinaste para isso, para arrumar a casa e fazer o jantar. Tu quiseste mais e eu fiz-te a vontade, não me arrependo. Disso não, nem de ter ido para além dos teus planos, o que me pesa e custa foi não ter percebido que tínhamos pouco tempo. Eu sei que não havia maneira de prever, estavas doente com a doença com que tinhas vivido 30 anos, que era crónica e não matava, havias de voltar do hospital para meter na ordem as nossas vidas, até a do Timóteo, o nosso cão, que esperava por ti em cima do terraço.

Podíamos ter estado mais horas juntas, podíamos ter jogado mais vezes ao cassino, podia ter aproveitado aqueles dias que faltavam, aqueles abraços que davas na despedida do hospital, mas era nova e a juventude não pensa no fim, nem na morte. O futuro seria um caminho direito para felicidade, onde tu estarias até seres a tal velhinha, muito velhinha com quem haveria de passar as tardes de domingo no quintal ou em casa das tias. As casas e as pessoas da minha infância estariam sempre lá, no mesmo sítio.

A morte não quis saber destes planos e levou-te num sábado de manhã. E tu não viste crescer as flores que te dei no dia da Mãe, nem foste a tempo de ver o que fizemos das nossas vidas, o Duarte e eu, os filhos com quem esperavas no portão até passar o autocarro, os filhos que escreviam no jornal e, por isso, guardavas todos os exemplares naquela mesa que já tinha sido da televisão. Às vezes penso nas tuas opiniões, nas que tinhas na altura e como seria agora, será que terias telemóvel e serias capaz de entender a Internet? E que ideia terias da política e da bola, do teu Porto, que era azul e da cor que mais gostavas.

A vida não quis assim e tenho passado estes anos sem ti. O Natal e a Páscoa, o dia da mãe com aquelas publicidades nas montras a anunciar que está a chegar, mas quase já não sei como era. Sei apenas que tenho saudades, que nunca deixei de ter e, em algumas noites, sonho que ainda cá estás e ainda me dás conselhos.