Crónicas

E aquele mundo novo de sonhos, pizzas e aulas de dança

As telenovelas chegaram há 40 anos, mas eu das primeiras lembro-me vagamente. A ‘Gabriela, Cravo e Canela’ passava tarde e fazia escândalo o decote da personagem Glorinha, que ficava à janela, mais os nus que causavam embaraço lá por cima no Laranjal, onde ainda se discutia se as mulheres podiam usar calças e ir ao café. O que dito assim remete para o fim dos anos 70, um tempo em que os pais decidiam quase tudo sobre a vida das filhas, até se as deixavam cortar o cabelo.

E sendo este o tempo não é difícil perceber o alvoroço que se fazia sempre que a RTP-Madeira estreava uma novela nova e brasileira, que eram as melhores e os actores trabalhavam bem, tão naturais, que dava gosto vê-los discutir, armar intrigas e apaixonar-se. Manhã cedo, no autocarro das sete e meia, o episódio da noite anterior enchia as conversas, fossem homens ou mulheres, a telenovela não tinha género. Todos sabiam os nomes dos personagens, as modas que lançavam e as tiradas mais batidas.

Eu não fui diferente e, aos 12 anos, naquela idade em que deixamos a infância, os meus sonhos eram já construções deste imaginário de pobres e ricos, heroínas cheias de garra e maus muito maus. Tenho uma amiga que decidiu ser jornalista por causa de uma novela e eu fiquei a pensar até onde foi a influência daquelas noites sentada no sofá, entre o meu pai e a minha mãe, a seguir o episódio novo em que o Tony Ramos, actor muito badalado por esta altura, fazia de galã. Uma vez fez não de um, mas dos dois galãs, dois irmãos gémeos separados à nascença.

O que causou grande espanto e maior admiração, os brasileiros é que sabiam fazer aqueles enredos e colocar os dois na mesma cena, embora fossem apenas um actor. A novela, que é talvez a primeira da qual me lembro bem, é a mesma da jornalista despachada, feitio arisco e penteado da moda, que foi um instante até se copiar o estilo. Lembro-me de contar os penteados estilo Mira Maia, a personagem jornalista, na escola, na paragem do autocarro ou à porta da Casa Paris, quando a minha mãe ia comprar roupa interior e me deixava a vigiar os sacos da casa de bordados.

E à porta da Casa Paris havia um manequim vestido de mini-saia e perneiras como na série ‘Fame’ e na novela ‘Baila Comigo’, a tal dos gémeos separados à nascença, da jornalista e de uma academia onde havia aulas de ginástica e dança. Como eu queria ter umas perneiras daquelas e ir a aulas de dança, era capaz de não comer bolos e gelados por um mês. Não é que fosse de pé leve, tivesse talento ou assim um sonho de rodopiar em sapatilhas de pontas de ballet. Eu era mais como uma personagem gordinha que lá aparecia, que gostava de comer, mas isso era pouco relevante.

Os sonhos são sonhos, existem, sejam possíveis ou não. De modo que fantasiava ao ritmo da telenovela, entre os amores dos irmãos gémeos, a academia e os amigos que se encontravam à noite para beber uma cerveja e comer pizza. Eu nem sabia bem o que era uma pizza, que era novidade e disso percebiam as miúdas que se sentavam no banco do pavilhão 5 da Horácio Bento. A pizza era mais ou menos como os óculos Ray-Ban e todas as outras coisas de marca: só havia em Canárias e para quem tinha dinheiro para almoços fora de casa.

Para os outros, onde eu me incluía, o que dava na telenovela pertencia ao mundo dos sonhos, era pura fantasia.