Crónicas

Brisa laranja

As festas eram boas e ficavam ainda melhores quando não implicavam comigo e me deixavam à solta para atacar os doces e as azeitonas.

Eu tenho saudades das festas da infância, daquelas com pratinhos cheios de cubos de queijo e azeitonas, marmelada aos quadrados e amendoins em taças de vidro em cima da mesa do quarto da televisão. As melhores eram as da minha tia Alice, quando os sobrinhos do meu tio Humberto chegavam da Venezuela ou os primos do Pilar vinham de visita e se abriam garrafas de licor e de uísque. A minha prima Ana servia Brisa laranja nos copos bonitos do armário e lembro-me do gás a fazer cócegas no céu da boca.

As visitas acomodavam-se nas cadeiras à volta da mesa dos aperitivos, nas poltronas da sala, no sofá de três lugares e comentavam o quadro na parede, que era daqueles que se comprava na cidade e tinha uma moldura dourada e vistosa. “A paisagem era bonita”, ouvia-se sempre nas conversas em jeito de elogio ao bom gosto da minha tia Alice e da minha prima Ana, que era professora e tão bem falada. O meu bisavô, pintado num quadro a óleo, dava quase sempre tema quando se instalavam aqueles silêncios de quem faz cerimónia.

Para mim era um velho com ar de poucos amigos, mas morrera aos 100 anos e isso não era para todos. A proeza fazia parte da nossa glória familiar e as minhas tias e a minha mãe tinham-lhe respeito. Às vezes havia até um certo tremor nas vozes ao contar histórias, todas com mais de 20 anos e sempre do tempo em que eram novas. Eu bem tentava imaginar a minha mãe em criança, o meu pai, as minhas tias ou até o meu primo Vítor e a minha prima Ana e não era fácil. E não parecia possível, eram tão crescidos, tão adultos e falavam-me naquele tom estranho com que se fala aos miúdos.

Ou pior, falavam de mim como se eu não estivesse ali, o que me enchia de vergonha e nem me dava a paz suficiente para atacar os pratinhos com cubos de queijo e azeitonas. “Está mais gordinha”, “vai dar grande”, “dava-lhe 14 anos” e “Celina qualquer dia tens um genro”. E eu ali a roer o caroço de uma azeitona com vontade de fugir e medo de parecer mal-criada, melhor era que falassem do meu bisavô ou do tempo que andava incerto e frio para Abril. Sorte tinha o meu irmão, que era rapaz e andava no grupo de campismo, já não estava para as festas em casa da minha tia Alice. Ninguém lhe dizia que ia dar grande ou que estava mais gordo. No máximo gabavam-lhe o cabelo frisado e comentavam que era tal e qual a cara do meu pai.

A minha tia Alice trazia bolo numa bandeja, sorria muito que, nesse tempo, já a audição lhe fugia e não apanhava todas as partes da conversa. No quarto da televisão, a minha mãe contava histórias e fazia rir as visitas. Ai a Celina, “tão bem falada, tão alegre, a pequena não sai a ti”. A pequena era eu e andava de roda dos aperitivos a comer quadradinhos de marmelada e amendoins e a pensar que empurrava tudo com um copo de Brisa laranja, que fora o gás fazer cócegas no céu da boca, sabia bem. As festas eram boas e ficavam ainda melhores quando não implicavam comigo e me deixavam à solta para atacar os doces e as azeitonas. E disso tenho saudades.