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Quando a tia Gabriela vai ao Cais do Sardinha e não volta

Proposta de negócio: uma lancha para transportar turistas do Cais do Sardinha para a Marina da Quinta do Lorde, com um kit de primeiros socorros composto por um grogue, um Xanax e pomada para massajar os músculos.

Nas últimas semanas, meses, anos, só tenho imaginado a minha tia Gabriela, com o seu bordão e o seu lenço de seda na cabeça amarrado no queixo e a genica que a caracterizava, a atravessar a vereda de quase quatro quilómetros. Nunca a apanhávamos quando agarrava na vassoura e corria o quintal naquele som inconfundível que fazia ao varrer as folhas que insistentemente caíam do til na casa da minha avó.

A tia Gabriela e a tia Baptista deram aulas em vários locais e durante anos desceram todos os dias a vereda entre a Eira do Serrado e o Curral das Freiras para ensinar os pequenos lá da freguesia. Tinham músculos que eu nunca vou conhecer no meu corpinho sedentário e no final do dia subiam a vereda em direcção ao carro que as levaria de volta ao Lombo dos Aguiares. Quando foram para a idade, era preciso um de nós, sobrinhos-bisnetos, levá-las pelo gancho para a sala onde nos reuníamos aos domingos. Nunca lhes propusemos um passeio ao Cais do Sardinha apesar de terem sido caminheiras natas.

Estes turistas que fizeram o Monte Branco e os Picos da Europa aos 40 anos pensam que não envelhecem. Que lá por terem tido jeito com as caminhadas quando tinham músculos que pareciam cordas de viola tomaram o elixir da juventude e que o Sanas e a Marinha estão aqui para ir resgatá-los a custo zero para os próprios e nem direito a uma gratificaçãozinha pelo serviço de “táxi” recebem.

A vereda do Cais do Sardinha é de nível de dificuldade média e já lá vi gente andar quase de saltos altos, chinelinho de meter o dedo e até descalça. Mas depois, quando vejo as notícias que de tantas até nos parecem o mesmo caso repetido, apetece-me montar um negócio de sapatos à entrada para as Baptistas e as Gabrielas que não perguntam nada a ninguém e não dizem nas recepções dos hotéis para onde vão.

Alguma coisa tem de mudar. Os operadores promovem só quatro dos 30 percursos recomendados, a pressão sobre os mesmos tem causado, infelizmente, acidentes fatais e a fama que os familiares e amigos que saem daqui algumas vezes com urnas pode ter consequências caras a médio prazo. Sábado, num passeio, cruzei-me com meia dúzia de turistas em direcção ao Cabo Girão pelo Jardim da Serra e não vi ninguém que se parecesse com a minha tia Gabriela. Mas também não vi, é verdade, mais do que um guia em quatro horas. O que deve significar alguma coisa.