Avô

Fazia calor naquela manhã. Mais que isso, era um lindo dia de sol. Mas ali estávamos nós, de preto, cabisbaixos, tristonhos. Cinzentos. Cinzenta era a cor da nossa pele naquele dia.

O João Simão tinha finalmente sucumbido à doença e ao peso do álcool. Ele, o nosso avô, já não o era nos últimos tempos, e nós, os netos, alguns adolescentes confusos e outros jovens adultos teimosos, também já não éramos os seus netos.

Deixámo-lo tantas vezes sozinho. Passávamos pela sua casa e não entrávamos, apesar da luz acesa. Porque aquele já não era o nosso avô, era uma doença com cara e corpo de homem amargurado, confuso, às vezes mau. E naquele caixão também não, não víamos ali o nosso avô.

O caixão estava aberto. Não se ouviam grandes choros. Há muito que a morte o perseguia. Mas o João Simão estava com bom aspecto. Bom aspecto para um morto, para o corpo de um agricultor de 85 anos.

De repente, ouve-se o burburinho crescente de alguém que resmunga ao passar entre a apertada multidão para ver o morto que não conhece. E, ao vê-lo, a senhora que aparentava não ter menos de 100 anos, disse muito admirada: “aaahhhh, mas era tão novo”. Com aquela voz descansada e alongada que só em Câmara de Lobos se ouve. E nós, os 6 netos do morto, rimo-nos às gargalhadas e voltámos a ser, por uns minutos, os netos dele. Do João Simão.