Crónicas

Que seja dos bons

O mundo inteiro é muito para uma pessoa só de modo que ainda vejo sorrisos rasgados, sinal que as promessas de há 15 dias duram pelo menos até ao Santo Amaro

O melhor de Janeiro é voltar ao de sempre com aquela sensação que o que está a chegar vai ser diferente. O ano é novo e quando as coisas são novas reluzem como ouro, dão como que uma esperança que nem se sabe explicar, é uma fé num futuro bom, que só pode ser bom, mesmo que o mundo esteja como antes ou pior.

O mundo inteiro é muito para uma pessoa só de modo que ainda vejo sorrisos rasgados, sinal que as promessas de há 15 dias duram pelo menos até ao Santo Amaro. Eu, pela minha parte, furei a resolução de ficar rica e não tenho jogado no Euromilhões, mas aqui estou, no quarto da televisão da casa do meu avô, a ouvir a minha tia Conceição.

A memória das coisas foge-lhe tão depressa que perdi a conta às vezes que me perguntou o mesmo e já fomos do carinho aos gritos, que isto não é como contam nos filmes. Aqui, quando somos nós no lugar, perde-se a paciência, diz-se o que não se quer e grita-se, grita-se muito. A minha tia não é uma velhinha serena e eu não tenho curso de cuidadora.

Eu sou a sobrinha que vem aos sábados e tenta ajudar, que lhe seca o cabelo, trata da pele e das unhas, mas, de todas as vezes, é como se fosse a primeira, faço o caminho por intuição e nunca sei bem como contornar o orgulho. A desordem mental não lhe roubou o sentido de independência, ela é ainda dona de si, da casa e todas as terras, as que lhe coube de herança e as outras que foram dadas às irmãs.

A história que repete para continuar ligada ao lugar onde cresceu, do qual não se afasta, mesmo quando acorda confusa sem perceber como ficou só, quando pergunta pelos outros, quando não percebe porque ficou, nem vê razão para continuar, mas os estados de espírito não se demoram muito na minha tia Conceição. Tão depressa chegam como desaparecem e, a velhinha saudosa, dá lugar à outra, orgulhosa, teimosa, que sabe tudo e não precisa de ajuda.

Há sábados piores, outros que correm bem, que ficamos no sofá a ver a tarde declinar do lado de fora da janela. Eu não faço planos, vivo um sábado de cada vez e espero sempre que seja dos bons.