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Três exercícios

Um exercício de futilidade

Ferro Rodrigues, o Presidente da Assembleia da República, quer instituir 17 de junho como o Dia Nacional em Memória das Vítimas dos Incêndios.

O País, partidos incluídos, deve aceitar. Está mais apascentado do que o costume. Depois das Europeias, instalou-se no ar um cheiro a manjerico, a bola, e a reconhecimento tácito de que o PS manda nisto. De que a alternativa, talvez por não existir, é pior. E de que resistir é fútil.

Segue, pois, um exercício de futilidade.

Não é preciso grande memória das vítimas dos incêndios para recordar que os 66 mortos e inúmeros desalojados de 2017 foram, primeiro, vítimas da incúria do Estado, que não assegurou, na medida possível e razoável, a protecção das vidas, integridade física, e propriedade dos cidadãos. O Governo carrega, ainda, a prova de que ardeu mais do que devia: a memória da demissionária Ministra da Administração Interna, que em lágrimas se afastou depois de o Presidente da República dirigir ao Governo a comunicação mais dura do seu mandato. Porque esses dias foram longos na medida em que o Estado foi curto, ainda não acabaram: a Procuradoria-Geral da República constituiu, a semana passada, 11 arguidos por corrupção e irregularidades na reconstrução das casas afectadas pelos incêndios.

Não nos iludamos. O dia da memória das vítimas dos incêndios convém, e convém a pessoas específicas. Os incêndios tornam-se, nesse dia, uma abstracção, a imputar ao Destino, ao Fado, ou quiçá ao Aquecimento Global. Os incêndios tornam-se efeméride, e por isso efémeros. E passam, não a um erro que compete ao Estado prevenir e combater, mas a uma fatalidade, que o povo deve esconjurar carregando, como Dom Quixote, a cavalo contra gigantes invisíveis. A toque de lata, é parecido com Donald Trump instituir o Dia Nacional em memória das vítimas das armas de fogo.

Ferro Rodrigues assevera que não é assim, e que o dia procura também “lembrar que Pedrógão não se pode repetir”. Sucede que pode repetir-se. E que, fora estes floreados, não há grande indicação de que a coisa está a ser prevenida. E esta sucessão de tropelias não pedia um simulacro de memória, mas o remendo e o consolo da acção. Saber, por experiência e preparação, que tantos portugueses não mais se arriscam a morrer assim.

Mas esse dia é mais demorado, e mais trabalhoso, do que o dia em memória das vítimas.

Mal por mal, portanto, proponho o Dia Nacional em Memória da Vergonha.

Sempre é uma coisa que nos faz mesmo falta.

Um exercício de publicidade

Gosto de propaganda. Em democracia, a comunicação é subtil, E tem graça treinar, ou pelo menos interessar o olho. Detectam-se estratégias, mensagens mais ou menos dissimuladas, que nos discursos são dribladas, mas nos cartazes são atrevidas.

Não entendo, por isso, os cartazes do PSD regional. A ideia de que o PSD “cumpre”, com cidadãos comuns desfrutando de conquistas ou bandeiras do Governo, pode ser apelativa. Mas o slogan não atinge o imaginário. Intimamente, cumprir é o que o cidadão espera da política. Não é uma conquista ou um prémio. E falta ali, sobretudo, o truque essencial de todos os que estão prestes a ganhar uma eleição: o futuro parece pertencer-lhes.

Talvez o meu olho esteja destreinado. Mas sempre senti que o PSD não ganhava pelo que tinha feito, mas por aquilo que ainda podia fazer. Talvez ainda mudem os cartazes.

Um exercício de generosidade

Morreu Agustina Bessa-Luís. Em muitos sentidos, era anti-moderna. Controversa, sentenciosa, original, elíptica, escrevia num código que poucos tinham paciência para decifrar. Num tempo em que a comunicação e a própria literatura aspiram ao lugar-comum, de vitalidade inédita do inglês como língua franca, e de preferência por glifos e emojis ao alfabeto, é natural que o lamento sensacionalista, e até sincero, da sua morte conviva com a decadência das vendas, e com a escassez de livros que não se reeditam.

Dispensando falsos moralismos e presunções deslocadas, é ainda assim justo assinalar que nós, Madeirenses, devemos-lhe o único grande romance passado na nossa terra: a Corte do Norte.

Sendo um livro dificílimo, é também genial. Dedica-se, com esmero e estilo, ao temperamento dos ilhéus, às idiossincrasias sociais, aos motores mais determinantes e aos acidentes mais curiosos da História da Região.

Mas a Corte do Norte vem imbuída de um valor mais alto, e mais raro, do que a grande literatura: a generosidade de compreender o outro.

Agustina deixou-nos, do Porto, um retrato harmonioso, detalhado e intenso. Uma obra em que a gente se revê, vendo o trabalho que isso deu.

Saibamos retribuir. Nem que seja admirando.