Artigos

Três chamadas para 2019

Numa altura de especial conformismo, tribalização, e desconfiança contra a palavra livre, 2019 parece pedir uma sociedade civil e representantes rebeldes.

Uma chamada do presenteTodos os políticos querem ser populares. A popularidade é a sua moeda, a sua unidade de valor. Podem dizer que não querem ser populistas. Mas é verdade é que serão tão populistas quanto julgarem que isso os torna populares. E julgam quase sempre mal.

O telefonema de Marcelo a Cristina Ferreira - durante o programa da manhã, entre reuniões de Estado, para desejar felicidades - podia ter sido uma corriqueirice, uma nota de rodapé numa Presidência de resto imaculada. Mas foi uma cedência a um vício e a uma tentação.

O coração do populismo bate a dois compassos. Por um lado, a partir da ideia de que a vontade do povo é, por definição, verdadeira, e não deve ser suprimida por mecanismos de controlo, ainda que científicos ou de mérito. Por outro lado, a partir do sentimento de que essa vontade popular é única e inequívoca, e de que as diferenças de opinião são fruto de uma corrupção introduzida pelas elites. Para o populista, não há ideias diferentes sobre o bem comum, há uma ideia universal de bem que é sufocada pelo poder instituído. Não existem, por isso, partidos políticos: há povo e elites.

Cristina Ferreira é uma apresentadora de elite, mas é-o porque não se identifica com as elites. O português comum adora-a porque se revê nela. Não se revê por causa do seu sucesso, da sua marca, da sua influência, mas por representar uma ascensão que de outra forma lhe pareceria impossível. E revê-se, sobretudo, por ter feito essa ascensão de forma autêntica - com as roupas, a voz, a linguagem, os maneirismos, as unhas, os sentimentalismos de “saloia” que o povo acalenta e acarinha com a mesma naturalidade com que as elites desprezam.

O Presidente da República não ligou a Cristina Ferreira. Quis ligar aos portugueses como Cristina Ferreira. Não para lhes dizer - como Churchill dizia à Europa - que está “com eles, mas não é um deles”, mas para dizer o oposto: “eu não estou convosco, mas sou um de vós”. Quando Marcelo telefonou a Cristina ,tocou as duas cordas do populismo: tratou a popularidade de Cristina como uma medida de verdade, e, contra o que se esperaria das elites, desceu do Palácio para lhe prestar tributo.

Nada disto é novidade para Marcelo, que não ficou célebre por ser Presidente, e antes foi eleito por ser célebre. Marcelo que se fez célebre na televisão, onde cultivou uma erudição pedagógica, mas também uma simplicidade saudável e genuína que o aproximava do povo.

Só que de um Presidente espera-se mais. Desde logo, o reconhecimento de que Cristina Ferreira tem os seus méritos, mas não é um modelo para a chefia do Estado. No Palácio de Belém mora uma legitimidade política concorrente à da Assembleia da República, que pressupõe algum conteúdo ideológico, e até um combate determinado a adversários determináveis. Um Presidente não pode, por isso, aspirar à popularidade absoluta, mas à representação das sensibilidades, e da ideia para o País, que está na origem do seu mandato.

É possível, claro, entender que foi coisa pouca. Ou mesmo um exemplo de bom populismo contra mau populismo - a boa moeda a expulsar a má moeda, para usar a expressão de um político impopular.

Mas o populismo não é um argumento. É o terreno de jogo. Um terreno contra o qual Marcelo adverte - e muito bem - em cimeiras internacionais, em encontros de juventude, nos discursos de Ano Novo. O telefonema pode ter sido uma treta. Mas foi uma treta que fez o resto parecer treta também. Afinal, quem abdica da sua autoridade a troco da sua popularidade arrisca-se a despedir-se das duas. Resta a convicção de que o Presidente sabe disto. E vai fazer melhor.

Uma chamada do passado

“Ferreira Leite prefere “pior resultado” do PSD do que “rótulo de direita””

O pecado original do PSD é a confusão entre uma opção táctica em 1976 com uma opção estratégica perpétua. Boa parte do país não tem, hoje, qualquer desdém pelo rótulo de direita. Pelo contrário. Reclama-o, identifica-se, votaria nele. E votaria porque precisa do seu discurso e prática. De uma defesa enérgica do indivíduo, da democracia liberal, do capitalismo e do pluralismo político. De liberdades cívicas, económicas, até de costumes, contra a colonização do Estado e o aquartelamento da sociedade civil. De desenvolvimento económico, privilégio do crescimento, e respeito pelos factos. De unidade de sentido com a União Europeia e (convém lembrar) com o Partido Popular Europeu, mas de comunidade de esforços para combater dos extravios que cronicamente nos detêm na tabela de rendimentos dos países europeus.

Isto feito com coragem, caramba!

A política, no seu melhor, é uma forma de organizar a aspiração colectiva de futuro. No seu pior, é uma tentativa de controlo hegemónico do presente. O PSD julga-se acossado por lhe faltar controlo do presente, mas está na verdade minguado por lhe faltar ambição de futuro. Esta fidelidade a uma ideologia gasta e entretanto dominada pelo PS, este desejo suicida de redundância e indiferença, é sintoma de um desgaste geracional e de uma falta de investimento emocional que só por pudor e respeito se distingue da velhice.

Um partido que não se importa de perder não se importa com o futuro que propõe ou com a alternativa que representa. E isso sim, é mais grave do que perder.

Uma chamada do futuro

A paz podre só serve a violência da guerra que lhe segue. Numa altura de especial conformismo, tribalização, e desconfiança contra a palavra livre, 2019 parece pedir uma sociedade civil e representantes rebeldes. Um rebelde não é um selvagem ou um insubordinado, mas um crítico justo, e, por isso, um reformista. Como Martin Amis disse de Cristopher Hitchens, é “alguém que lida com cada caso de acordo com os seus méritos. Contra preconceitos, piedades, inibições, tabus e instintos de manada, fala e escreve sem medo e sem favor”.

Em Portugal, infelizmente, ainda é daquelas chamadas que não se atende.