Artigos

Dormindo com o Inimigo

O papel da família deve ser logo de início o de ensinar à criança/jovem a ter auto-respeito e a abominar a violência

Este título pertence a um romance da autoria de Nancy Price que veio a ser adaptado para cinema (sob o mesmo nome) em 1991. Tanto o livro como o filme retratam a história de uma mulher violentada pelo seu marido com o enredo a se desenvolver sempre em redor da triste realidade que é a violência doméstica. Triste e atual.

Como estarão a par, recentemente a UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) revelou dados correspondentes à natureza das relações amorosas de jovens que frequentam do sétimo ao décimo-segundo anos de escolaridade. Estes dados vieram mostrar algo ao mesmo tempo chocante e previsível — demonstraram que aproximadamente 70% dos jovens entrevistados acham normal e não repreensível o uso de violência na relação amorosa. E com o objetivo de deixar tudo em pratos limpos, visto que há quem não compreenda bem este aspecto, a violência seja ela doméstica seja no namoro, é qualquer ação praticada com o objetivo de ferir o seu alvo, tenha ela raíz física, psicológica, económica, social, sexual ou de outro qualquer tipo.

Em quase tudo, a violência doméstica e a violência no namoro são ocorrências reflexo uma da outra. Aliás, de um ponto de vista metafórico a violência no namoro é como uma filha da violência doméstica, tanto porque quase sempre uma antecede a outra em termos de idades dos envolvidos e porque, mais importante, há estudos que correlacionam o aumento do risco de tolerar a violência no namoro em quem descende de casais onde ocorre violência doméstica, possivelmente porque entende como “normal e não repreensível o uso de violência na relação amorosa”. Contudo, há um ponto em que, na minha opinião, diferem, e esse é o de quem é que é o principal responsável pela salvaguarda da vítima. Enquanto que na violência doméstica, perante a idade dos envolvidos (supõe-se que pelo menos um seja adulto) o principal atuante é o Estado após denúncia, na violência no namoro o principal apoio é (ou deveria ser) a família, tanto na prevenção como na “reparação”.

O papel da família deve ser logo de início o de ensinar à criança/jovem a ter auto-respeito e a abominar a violência (no caso do ofensor também) no sentido em que é frequente a ideia de “pessoa X me bate mas eu deixo porque o/a amo, tu não percebes” ou então “eu sei que ele/a me bate mas não sei o que faria sem ele/a”. É, enfim, a ideia de “cara-metade”, de que “não existe mais ninguém que me ame ou mais ninguém para mim” que leva estes jovens (e graúdos também) a se sujeitar a qualquer coisa para continuarem com o ofensor. Duvido que existam “caras-metades”, mas se existirem de certeza que não se ferem intencionalmente.

O segundo papel da família é o de detetar diferenças no comportamento do/a jovem, de perceber quando alguma coisa está diferente (que certamente nem sempre será fácil, mas ninguém disse que a parentalidade o seria) e agir conforme isso lembrando que por vezes é necessário agir acima daquilo que a vítima quer, porque nem sempre o que queremos é o que precisamos, e só aí é que o Estado começa a ganhar mais responsabilidade para agir.

Para terminar, acho também de relevar o papel da sociedade que se aplica em ambos os casos de violência doméstica e violência no namoro. E o papel desta é o de não piorar o problema com preconceitos mal concebidos, porque a verdade é que a violência não escolhe idade, sexo, orientação sexual, etnia, estrato social ou religião, ou com julgamentos precipitados como foi o caso recém “re”-descoberto do ator Johnny Depp que foi acusado de praticar violência doméstica contra a sua esposa e que, depois de ter sido trucidado pelos media e pela sociedade, veio a se descobrir que ele próprio era vítima da sua esposa que se conseguiu esconder no “buraco” da consciência pública que decretou que só os homens são capazes de praticar estes atos atrozes.

Dito isto, relembro que todos têm valor próprio, que a ajuda existe sempre e que, se não estiver na família ou amigos, está em organizações como a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima ou UMAR (entre outras) e que, acima de tudo, o uso de violência não tem qualquer tipo de justificação.