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A Cesta de Ovos

Era uma daquelas cestas tradicionais, em vime natural, com uma pega para ser levada pela mão, da mesma forma como, já na altura, as senhoras usavam as malas de alça curta. Embora os manuais escolares viessem de Lisboa, aquela cesta, impressa a cores no livro da 1ª Classe, parecia o desenho fiel das que o meu avô fazia, no sítio da Ribeira Funda, em São Jorge, com as suas hábeis e firmes mãos (e pés, porque os usava, sempre, para manter os vimes em posição). Por baixo da cesta, numa letra redondinha e perfeita, como só os livros de instrução primária reproduziam, eu lia: ‘os ovos’. E dentro da cesta, acumulados em boa altura, justificava-se a legenda com as típicas formas brancas, estas imaculadas, ao contrário das do galinheiro lá de casa, que sempre denunciavam o orifício de onde provinham. As longas férias de verão já se arrumavam no baú das memórias, mas, naquele momento, os cheiros que a escola e o outono misturavam não me eram estranhos. Apesar de, com 7 anos feitos, estar perante o livro do primeiro ano de escola, aquele era o dia para iniciar a 2ª Classe. E coitado de quem não tem berço, coitado de quem não tem padrinhos (até os tinha, os de batismo, mas estavam na Venezuela, ou ainda na África do Sul).

A sala da 2ª Classe, no primeiro andar, estava demasiado cheia. Mas ainda havia folga na da 1ª Classe, no rés do chão. Ambos os professores conversaram e decidiram. A dedo, escolheram um grupo de alunos, de entre os novos da 2ª Classe, eu incluído. Descemos as escadas, e voltamos a entrar na sala de onde havíamos saído, com aprovação, no ano letivo anterior. O forte cheiro a tabaco denunciava a proximidade do professor, e recordava o tempo anterior às férias grandes. Abriu o livro, também familiar, e, apontando com o dedo, pediu que lesse. ‘Os ovos’, li. E a sentença veio imediata. ‘Viste pelo desenho’, disse, ‘ficas mais um ano na 1ª Classe’.

Nenhum de nós, os escolhidos a dedo, se safou naquela prova.

Uma criança pode não ter argumentos perante a autoridade de um adulto, mas tem sentimentos. E a injustiça pode ser sentida profundamente, como eu senti naquele momento. Tão profundamente que, hoje, continua bem gravada na minha memória. Foi o único ano que “perdi”, e embora não saiba o que efetivamente me foi roubado, pois desconheço o que teria sido o meu percurso escolar alternativo, sei que ganhei uma profunda intolerância perante as injustiças. Porque uma criança também pensa, mesmo quando nada diz, questionava-me o porquê de não me ter sido dada a ler uma palavra sem desenhos. Pensei até que, se tivesse lido pelo desenho, o mais provável seria mencionar a cesta e não apenas os ovos. Pensamentos que ficaram comigo, porque, naquela altura, as crianças também eram amordaçadas.

Anos depois, no fim da primária, apesar de bom aluno, o professor queria reter-me mais um ano, porque ‘eu era muito novo para mudar de escola’, dizia. Salvou-me a minha mãe, que dessa vez foi firme. A mesma sorte não teve o meu colega da carteira da frente, também bom aluno e de famílias sem grandes recursos, como eu, mas ainda mais franzino... E assim se produziam novos emigrantes. Assim se mantinha o status quo social. Naturalmente que os filhos de famílias mais ricas, como os desses mesmos professores, nunca ficavam retidos pela idade, ou por outro argumento irracional, e ilegal, qualquer.

Hoje as injustiças continuam. É no acesso ao emprego. É no acesso aos cuidados de saúde. É no acesso à educação. A competência importa pouco, continua a valer mais a influência económica, social e política. A cunha, essa instituição secular, e o preconceito, uma nódoa que se entranha na alma de todo um povo, continuam a minar o terreno que pisamos. E o pior é quando se arvoram novos tempos que se constroem em cima dos mesmos alicerces e das mesmas paredes-mestras. Estejamos atentos.