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Crónicas

Está na hora de perder a paciência

Talvez esteja na hora de começarmos a perder a paciência, de verdade, com os abusos de poder disfarçados de educação

Com o início do novo ano letivo, volta a ser impossível ignorar um tema que nos deveria inquietar a todos: a violência doméstica (VD) contra crianças. Os números continuam a ser alarmantes. “Eles só vão mudar quando pais e adultos de referência perceberem que a VD não começa com murros nem com ossos partidos, mas com um grito que rasga por dentro”. Ouvir esta verdade, dita por uma psicóloga amiga, fez eco em mim. Talvez porque acredito que os direitos humanos não são frases pomposas que se derramam nas redes sociais, mas um compromisso diário, feito sobretudo de responsabilidade pessoal, gestos e palavras, que começa em casa.

Acredito, e a ciência já demonstrou, que a violência não se mede apenas pelas marcas visíveis, mas sobretudo pelas feridas invisíveis que tantas vezes carregam quem menos pode defender-se.

Depois de estar dias a fio, em diretos e reportagens, com a TVI/ CNN Portugal, sobre um dos casos mais mediáticos de VD em Portugal, e que envolve precisamente uma criança de nove anos, os valores que me guiam não me permitem calar, e a coerência ocupa lugar cimeiro na minha hierarquia. O silêncio é cúmplice. Por isso, decidi escrever esta crónica. Não era o tema que eu planeava trazer, confesso, mas tornou-se imperativo. E a partir de uma conversa generosa com a mulher, mãe, investigadora e especialista em parentalidade consciente e educação, a minha querida Mariana Bacelar (a quem agradeço, de coração!), nasceu este encontro do bem que agora partilho.

Nas últimas semanas, as imagens, os números e as notícias sobre violência doméstica em Portugal voltaram a chocar-nos. Mas talvez o mais urgente seja perguntar: o que é que ainda escolhemos não ver?

Toda a agressão física ou psicológica é violência. Sempre. Seja entre adultos, seja contra crianças. E, no entanto, como sociedade, ainda aceitamos, demasiadas vezes em silêncio, que as crianças sejam alvo de práticas que nunca toleraríamos em adultos.

Se puxar um braço, empurrar, gritar, castigar, insultar ou ameaçar um adulto é agressão, porque razão continuamos a justificar o mesmo comportamento quando o alvo é uma criança?

Também infligimos a “palmada na hora certa” ou como muitos também lhe chamam a “palmada pedagógica” aos adultos?

E o castigo no quarto, isolando a criança, agora com o nome pomposo de ‘time out’, para que ela pense no ‘disparate’ que fez (quando o cérebro ainda nem maturidade tem para tal e quando a criança não entende o que é um ‘disparate’ e qual o comportamento esperado em vez do que apresentou)? E quem diz criança diz adolescente.

Uma criança não merece apenas o mesmo respeito que um adulto, merece muito mais. Porque está em construção, porque cada gesto, cada palavra e cada silêncio deixam marcas que moldam o adulto que um dia será, porque depende de nós, os cuidadores, para sobreviver e se desenvolver de forma saudável e em segurança.

E aqui está uma verdade dura de aceitar: muitos de nós crescemos vítimas de pequenos (ou nem tanto) maus-tratos. Mas isso não pode ser desculpa. Ser adulto é investigar, ganhar consciência e assumir a responsabilidade de interromper ciclos. A violência não se perpetua sozinha, ela é ensinada, passada, normalizada (quase sempre de forma inconsciente). E precisa, urgentemente, de ser travada.

Não há palmadas “inofensivas”, não há gritos “merecidos”, não há humilhações pedagógicas. A ciência, a neurociência, o nosso coração e a nossa consciência já nos dizem tudo: não existe violência pequena. Existe violência, ponto.

O que precisamos, então? De consciência, informação fidedigna e coragem coletiva para transformar o paradigma. Que gritar com uma criança deixe de ser visto como “educação” e passe a ser encarado como aquilo que é: violência. Que empurrar, ameaçar, castigar ou ignorar uma criança seja tão socialmente reprovável quanto o é quando acontece a um adulto. Que o julgamento social deixe de recair sobre o comportamento da criança e se vire para onde sempre deveria estar: nos adultos que falham em cuidar, proteger e respeitar. Nos adultos que falham em presença verdadeira.

É fácil perder a paciência com quem tem menos poder (seja pela idade, pela condição, pelo tamanho, pela hierarquia…) do que nós. É fácil perder a paciência com quem acorda feridas por tratar, em nós. Agora, como adultos, é justamente nas situações mais desafiantes, que somos chamados a demonstrar amor e presença incondicionais. Amor gera amor. Gentileza gera gentileza. Consciência gera consciência. E isto, não são clichés, é ciência!

O terapeuta familiar dinamarquês, Jesper Juul, costumava dizer aos pais que “as crianças que são respeitadas aprendem a respeitar os outros; as crianças por quem existe verdadeira preocupação aprendem a preocupar-se; as crianças cuja integridade não é violada não violam a integridade alheia.”

Quando a violência habita em casa, tudo muda. A cooperação das crianças assume uma forma distorcida: tornam-se espelhos, refletindo os sentimentos que observam. Numa família onde o pai agride (física ou psicologicamente) a mãe (ou vice-versa), não é raro que um filho imite o agressor e outro a vítima. Um aprende a ferir, o outro a ferir-se. Um exterioriza a destruição, o outro volta-a contra si, através da solidão, das drogas, da promiscuidade ou de um peso de responsabilidades que nunca deveria carregar.

Juul explica o porquê: crianças que crescem sob críticas tornam-se críticas ou autocríticas; as que vivem em ambientes violentos reproduzem a violência ou voltam-na contra si próprias; as que sofrem abuso sexual oscilam entre a autodestruição e o abuso sobre os outros.

O ambiente em que crescemos, e aquele que oferecemos aos nossos filhos, é muitas vezes o solo de onde brotam comportamentos destrutivos ou autodestrutivos. E isto é igualmente válido para famílias que atravessaram o divórcio. Muitas vezes, a violência não se manifesta em murros ou em gritos diretos, mas em palavras que ficam a ecoar na vida das crianças. Adolescentes e filhos mais novos que assistem a discussões constantes entre os pais, onde um diminui o outro, o pai (ou mãe) acusa a mãe de falsidades ou a ridiculariza pelas costas, são, também eles, vítimas de violência doméstica.

A violência pode estar na manipulação, no silêncio imposto, quando, por exemplo, nos fins de semana ou férias, um progenitor impede o contacto telefónico com o outro, transformando o amor num campo de batalha. Pode manifestar-se no uso da criança como mensageira de recados envenenados pelo rancor, obrigando-a a carregar fardos que não lhe pertencem. Pode surgir na chantagem emocional, quando o afeto ou o apoio são condicionados às escolhas do filho em relação ao outro progenitor. Ou ainda quando se impede ou se obstrui o direito da criança à saúde, apenas por não aceitar um diagnóstico ou por discordar da escolha do profissional, por não ter sido o seu.

O direito à convivência traz consigo a missão de proteger quem mais precisa, nunca o direito de impor ou agredir. Algumas destas violências são subtis, outras, nem tanto, mas todas são devastadoras. Porque cada palavra depreciativa dirigida ao pai ou à mãe é, no fundo, uma ferida aberta no próprio filho. Cada lealdade dividida mina a confiança, cada manipulação corrói a autoestima. E assim, entre acusações e ressentimentos, a infância e a adolescência transformam-se em terrenos férteis para a dor invisível.

A grande diferença é que, mesmo no meio de tudo isto, quando uma das partes vive, agindo com consciência, a criança aprende sobre limites de forma saudável, aprende a cooperar, porque se sente amada e respeitada na sua integridade, reconhecida no seu valor. Aprende também a identificar quando é vítima de maus-tratos e a saber onde e como fazer ouvir a sua voz. Sim, porque as crianças têm voz, os adolescentes têm voz, e quanto mais cedo perceberem isso, melhor para todos. É assim que desenvolvem noções de responsabilidade pessoal, social, defesa dos seus direitos e compreensão dos seus deveres, aprendendo ainda a partilhá-los com os demais.

No meio da tristeza e da indignação que as notícias de VD provocam, há também alguns sinais de esperança: vozes que se levantam contra a violência, contra a misoginia, contra a xenofobia, contra o racismo. Que essa mesma força e consciência social se lembre sempre disto: quando uma criança assiste à violência, ela é vítima da violência. E quando uma criança é vítima de violência, o futuro de todos nós está em risco.