Os meus melhores talentos
A minha mãe lamentava que as minhas únicas notas ‘5’ fossem em matérias de importância duvidosa
Do lado de fora da janela e acima das árvores avistava-se um céu azul a prometer dias bonitos, mas o calor e os primeiros dias de praia eram um assunto para depois do ‘ponto’ de História e eu era um ‘às’ em datas, nos descobrimentos, na revolução francesa, na primeira e na segunda guerra. Aquele mergulho no passado entre crises, fomes, massacres, a arte e a riqueza de pessoas mortas desafiava-me a imaginação e via-as vestidas à época, nos campos de batalha ou a atravessar as ruas de Londres, ao lado de carruagens puxadas a cavalos
O passado da Humanidade era convocado, um bocadinho de cada vez, nos testes para uma turma de adolescentes desligados, que faziam os possíveis por se desembaraçar do incómodo, enquanto tentavam fintar a professora com cábulas, mas a sala onde se ia testar conhecimentos tinha manhas. A mais evidente era o espelho por cima da lareira - aquela devia ter sido a sala de estar da quinta onde tínhamos aulas -, que era quase como ter uma câmara a vigiar-nos. E eu percebia a aflição, só era um ‘ás’ a História; se fosse Física ou Inglês o pânico seria o mesmo.
A minha mãe lamentava que as minhas únicas notas ‘5’ fossem em matérias de importância duvidosa, não era claro para que serviriam. O que podia eu fazer com aqueles testes de 100% a História e Geografia, o que me podiam dar no futuro? A dona Celina, a senhora minha mãe, fazia perguntas a mais e nenhuma era a certa. Não era o futuro, nem sequer o passado, mas o meu presente, a Lina Marta de 15 anos, pessoa de atributos pouco relevantes, podia orgulhar-se de ser a melhor em alguma coisa.
Quando saísse dali e corresse para o portão para fazer a viagem até à Avenida do Mar iria vaidosa e satisfeita por ter dado dicas à entrada e confirmado as respostas à saída. E sem ninguém reparar na saia feita em casa, nas meias solas nos sapatos e nos sete quilos a mais, que tornavam a roupa mais difícil de passar nas ancas. Ou que ia de autocarro para o Laranjal, um lugar onde aquelas miúdas e aqueles rapazes não sabiam onde ficava, nem que era preciso apanhar o Jamboto e sair quase no fim da carreira.
E por isso não era só o sol, os pedaços de céu azul entre as nuvens e as férias da Páscoa quase a chegar que me faziam saltar como na escola primária e admirar ainda mais o papagaio falador da casa de bordados na Avenida do infante. Ou esquecer a luta que se avizinhava, a batalha para que me deixassem ir uma vez à praia e outra a uma sessão no Cine Casino, factos que me manteriam viva naquele microcosmos exigente do intervalo maior da escola dos Ilhéus, entre um cachorro quente a nadar em manteiga e os minutos no muro do campo de futebol, a ouvir as avaliações aos rapazes mais bonitos.
A minha mãe não ia ceder assim, de uma vez só e sem um sermão, que seria para ter juízo ou para não gastar dinheiro ou as duas coisas. Ou aquilo que me parecia ser uma batalha fosse apenas medo de me lançar no mundo, dar autonomia para ir uma manhã ao Lido e uma tarde ao cinema. Eu achava-me grande e preparada, ela via uma miúda ingénua e distraída dentro de um corpo de mulher e queria proteger-me de todos os males. E essas férias da Páscoa acabaram por ser as primeiras em pude ser, de facto, uma adolescente.
No fim, passei de ano, tive 5 a História e Geografia, 4 a Português e entrei no secundário, seguindo o coração e contra a vontade da minha mãe. Eu nunca seria boa a Física e a inglês, mas talvez conseguisse fazer alguma coisa com os meus melhores talentos.