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Fact Check Madeira

Governo deu parecer negativo à demolição do Solar do Engenho?

Polémica instalada com mais um património, desta feita no Porto da Cruz, ainda que carecendo de classificação, que sucumbiu à construção de um novo edifício

Foto DR/JPP
Foto DR/JPP

A destruição de um património histórico na vila do Porto da Cruz despertou reacções negativas de cidadãos e conhecedores, como foi o caso de Emanuel Gaspar, professor e dirigente do JPP que, a 16 de Abril último, expressou "um veemente protesto” pela demolição do antigo Solar do Engenho", lembrando que "o edifício datava do século XIX e era um ícone da época áurea da produção sacarina, do século XIX". O mesmo refere que "fica para a posteridade o obscurantismo cultural e a ignorância de quem autorizou a infeliz e irresponsável demolição". Mas será que é mesmo assim? Houve uma lavar das mãos das autoridades regional e municipal?

O dirigente partidário, quando fez a denúncia, não sabia o que efectivamente está a ser ali construído: "O que irá surgir no lugar de memória do solar é uma incógnita." Contudo, disse que "correm rumores de que poderá erguer-se ali uma unidade hoteleira". Facto é que será mesmo isso que irá ali nascer à beira-mar, em zona que tem sido votada ao abandono dadas as constantes quedas de pedras. Tanto é que foi realizada uma gigantesca protecção da arriba, por onde passa a Estrada da Maiata.

Por baixo, na fajã que tem uma estrada em terra e que 'liga' o centro da vila à praia da Maiata, tem sido usado para muitas coisas, mas até hoje sem um projecto construído (uma promenade seria a opção mais óbvia), tanto é que foi zona de passagem dos atletas do ainda ontem terminado MIUT. Emanuel Gaspar notou que trata-se de "um lugar de risco" e diz que "não deveria ser permitido construir debaixo da arriba instável, de onde está sempre a cair pedras", confirmando esse registo histórico. Contudo, nunca foi colocado qualquer entrave à passagem de pessoas, apenas de carros, mesmo porque não há saída rodoviária pelo outro lado.

O edifício, aliás os dois edifícios, pois há o solar que estava em estado de abandono, mas praticamente de pé, e o engenho em si, que estava em ruínas, estão inseridos no Plano Director Municipal de Machico como "Património que se propõe para futura classificação", sendo que o documento foi publicado em Diário da República de 15 de Novembro de 2005, fará agora 20 anos. Mas nunca foi feito nada por isso até que em Fevereiro último foram montados os andaimes e começou o trabalho no terreno.

Ainda Emanuel Gaspar lembrou que o Solar do Engenho estava inventariado pela Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira (ARCHAIS), num trabalho de investigação conjunto da sua autoria e do antigo dirigente daquela associação e hoje líder do JPP, o arqueólogo Élvio Sousa.

Efectivamente, encontramos o referido estudo e em anexo mostramos o parecer dado pelos mesmos a estes dois edifícios que se faziam num só património. Do primeiro, o solar, referiam neste estudo de 2005, apoiado pela autarquia então liderada or Emanuel Gomes, que é um "edifício de planta rectangular com torre, construído em alvenaria de pedra rebocada a cal, situado à beira mar. O imóvel apresenta fenestramentos com molduras de cantaria, possuindo tapa-sóis pintados de castanho. Algumas aberturas apresentam grades de ferro forjado. Na torre, entre as duas janelas e virado para o mar, surge um óculo de forma oval. A entrada da habitação faz-se pela parte lateral que dá para a rua", no caso Sousa e Freitas. A classificação dada foi de imóvel de interesse municipal, de utilização actual (há 20 anos) como residência

O segundo, classificado na altura como "Ruínas do Antigo Engenho", escreviam os autores: "Nestas ruínas, anexas ao Solar do 'Engenho', ainda se podem observar algumas paredes em alvenaria de pedra e alguns vãos em cantaria rija regional. Mas, o que é de salientar nestas ruínas é a imponente chaminé que estoicamente subsiste. Esta é construída em alvenaria de pedra basáltica apresentando ainda vestígios de argamassa de cal", tendo sido classificado como "devoluto" e "local de grande interesse arqueológico".

Parecer desfavorável à demolição

Ora, apesar deste distante parecer, nada ter sido feito em termos arqueológicos ou de recuperação, do imóvel que hoje existem apenas uma parte, que deverá ser mantida, entre as quais aparentemente a imponente chaminé, poderia ter sido salvo, uma vez que mereceu da parte do Governo Regional, no caso a Direção Regional de Turismo e a Direção Regional de Cultura, parecer negativo à demolição. Um parecer enviado à autarquia em Setembro de 2023, ou seja à data de hoje há mais de um ano e meio.

Numa reacção, essa posição contrária às intenções dos promotores ficou evidente. "As Direções Regionais do Turismo e da Cultura emitiram, em Setembro de 2023, um parecer sobre o Projeto de Licenciamento de 'Alteração de quatro Edifícios destinados a Comércio e Serviços, e Alojamento Turístico' localizado no Sítio das Casas Próximas, freguesia do Porto da Cruz, que impedia a demolição do imóvel. O parecer conjunto foi enviado à Câmara Municipal de Machico, pelo gabinete do então Secretário Regional de Turismo e Cultura, a 12 de Setembro do referido ano", começa por referir.

E acrescenta: "No documento, a Direção Regional do Turismo (DRT), considerava que o 'projeto em questão não possui enquadramento para ser considerado Empreendimento Turístico'. Tendo em conta que o projeto em análise tinha como objetivo a 'Alteração de quatro edifícios destinados a Comércio e Serviços, e Alojamento Turístico', a DRT sublinhava que, 'apesar do projeto apresentar uma capacidade de 18 unidades de alojamento, o mesmo não está funcionalmente preparado para ser integrado numa das tipologias de empreendimentos turísticos previstas na lei'."

No mesmo documento, "a Direção Regional da Cultura (DRC), que corroborava o parecer da DRT, recordava que o projeto em causa se desenrola 'nas ruínas do Solar de João Freitas Leal, que data a sua construção ao séc. XVIII, junto ao Engenho de João de Freitas LeaI, fundado em 1858'. A DRC acrescentava que 'o solar é constituído por casa senhorial, adega, lagar, ruínas do velho e novo engenho e a casa da máquina a vapor', salientando que o imóvel não se encontrava classificado nem na área de proteção de imóveis classificados".

No entanto, acrescenta, "tratando-se de uma construção de interesse cultural, datada do século XVIII, a DRC entendeu, no mesmo parecer, que o projeto tivesse em consideração vários aspetos, nomeadamente que 'as paredes de pedra e outros elementos estruturais em pedra, como por exemplo: arcos, pavimentos em lajes de cantaria, calçada de seixos rolados ou pedra escassilha, fornos, lares, etc. que possam surgir no decorrer da obra, devem ser recuperados na íntegra e integrados no projeto. São parte estrutural do edifício que não devem ser alteradas'", determinou.

E ainda frisa que "a DRC defendeu também que os telhados da casa principal e das atuais ruínas mantivessem a sua configuração original e que todas as portadas interiores, tapa-sóis, portas, portões, janelas, interiores e exteriores, da casa principal fossem recuperadas e integradas na solução final, devendo apresentar um desenho tradicional em madeira pintada (não lacada), nas cores tradicionais. Recomendava ainda que as molduras de portas e janelas, interiores e exteriores em cantaria, fossem preservados na íntegra, não sendo permitida a introdução de 'forras' de cantaria. Sobre as guardas e gradeamentos em ferro, referia que deveriam ser recuperadas, de acordo com as técnicas e acabamentos tradicionais e os pavimentos teriam de reutilizar os materiais originais, ou seja, soalho e cantaria, para um melhor enquadramento", reforçou esse objectivo. E conclui: Assim, este conjunto de condições salvaguardavam a manutenção do edifício e impedia a sua demolição. A DRC informava ainda que devia ser garantido o cumprimento da legislação referente aos trabalhos arqueológicos desde a fase de projeto."

Perante estes factos, resta levantar a questão sobre o que falhou para que essas determinações não fossem cumpridas? As respostas vieram praticamente nos dias seguintes, com o vereador da Câmara Municipal de Machico, Hugo Marques, que tem os pelouro do Ambiente, Cemitérios, Trânsito, Planeamento, Ordenamento do Território e Urbanismo. Além de declarações à comunicação social, também partilhou o que aconteceu para que o património fosse deitado abaixo.

Fica aparentemente esclarecido que ninguém queria o fim que teve, mas pouco ou nada havia a fazer quando a 'Mãe Natureza', que ao longo de quase dois séculos protegeu o edifício, precisamente quando foi iniciada a sua requalificação, fez por deitar abaixo o edificado, não restando outra alternativa que a reconstrução. 

Os dados indicam que, sim, houve parecer negativo de duas direcções regionais e em Setembro de 2023. A própria autarquia de Machico tinha o imóvel na lista de interesse municipal. E a ARCHAIS havia sinalizado o imóvel num inventário realizado há 20 anos. Deixado ao abandono durante décadas, agora será um projecto imobiliário virado para alojamento turístico. A demolição apanhou todos de surpresa e, agora, é uma inevitabilidade entre tantas outras na história do edificado madeirense que sucumbem ao poder da Natureza.