O Fevereiro trágico na Ribeira Seca
Para que não se apague no epicentro, nem na bruma da memória, nem se desvirtue os factos do percurso fidedigno da história, trago às cartas do leitor, um episódio de contornos a roçar as perseguições e a tortura da “Santa Inquisição”: o cerco policial à igreja da Ribeira Seca, em fevereiro de 1985. Congeminado com a hierarquia da igreja madeirense e Poder político governativo, coube ao Nuno Homem da Costa, Comandante da PSP dessa altura, executar a operação contra a comunidade religiosa local, a qual viu-se refém da sua igreja durante 18 dias e 18 noites. Enquanto 80 polícias montavam o cerco à volta do adro, o Comandante junto com o falecido Pe. Martinho, o presidente da Câmara Municipal de Machico, Jorge Gomes, o adjunto do presidente do Conselho Regional, Carlos Machado e dois carpinteiros funcionários públicos perpetravam o assalto com o arrombamento em primeira linha das portas da igreja. Nem paramentaria, nem livros de batismos e casamentos, nem a aparelhagem de som escapou aquela pilhagem bárbara, cometida ainda sob a penumbra do amanhecer de mais um dia novo de inverno. O plano tinha como objetivo desacreditar e isolar um povo humilde, que ao se sentir espoliado pela hierarquia da igreja madeirense, saiu em defesa do que era seu, do que possuía de mais sagrado – a sua igreja, administrada canonicamente pelo Pe. Martins Júnior, desde a sua nomeação, em finais da década de 60 do século passado. Ressentida e revoltada a população montou um cerco em volta do corpo policial, uma espécie de defesa próxima (na gíria militar), durante o tempo de ocupação, revezando-se de quando em vez e cantando “A igreja é do Povo// O Povo é de Deus//O que faz a polícia na casa de Deus”. Nesse longo período de ocupação o povo paciente aguardava pelas horas de mudança de turno do policial, ocasião em que as entradas e saídas se operacionalizavam com alguma vulnerabilidade no cordão se segurança montado, proporcionando à multidão em vigia constante alguma aproximação ao adro da sua igreja. A intenção passava por abrir as portas do templo, que se encontravam desde o primeiro dia da invasão cerradas e reforçadas com barrotes em cruz, pelos carpinteiros que acompanharam a unidade policial no primeiro dia da operação. Como consequência, o povo era repelido à força, somando-se novas bastonadas e detenções!
O cerne deste “dilúvio” como o povo assim o chamou, prendeu-se com a recusa do Padre Martins Júnior em entregar a chave da igreja ao chefe máximo da Diocese do Funchal, o Bispo Dom Teodoro Faria. A bem da história dos factos, essa decisão, não partiu do sacerdote, mas sim da Comissão Paroquial da Ribeira Seca que, dias antes, auscultou em plenário a população, tendo a mesma determinado e desautorizado o seu pároco a não entregar a chave da igreja, construída unicamente com o esforço e sacrifício de pais e avós da actual comunidade. Todavia, a fé da população não se esmoreceu durante essa incompreensível ocupação, pelo contrário, tornou-se mais fértil e esclarecida, alimentada com a eucaristia dominical, que passou a ser celebrada ao ar livre, pelos sítios da paróquia.
Este caso, não resultou em outros contornos, nem se prolongou para além dos 18 dias e 18 noites, porque alguns órgãos de comunicação social do Continente deslocaram-se à Madeira, em trabalho de reportagem para informar o mundo do esbulho e da repressão religiosa, que a humilde comunidade da Ribeira Seca estava a viver, em tempo de ascensão da liberdade e democracia, conquistada a uma década atrás à ditadura do Estado Novo. Neste contexto, apraz reafirmar o silêncio dos jornais e da RTP-Madeira dessa altura, promotores também sobre a permanência daquela ocupação policial. Falta ainda fazer esse estudo, mas, já é possível concluir em que posição estavam: no lado errado da história, dominados e controlados pelos poderes instalados da Região. E para que outros fevereiros marcados por invasões a templos sagrados não voltem a repetir-se, sobretudo na nossa Região, torna-se fundamental na passagem destes primeiros 40 anos sobre a ocupação relembrá-la, como também reavivar a falha histórica dos nossos meios de comunicação social regional, cuja existência prende-se com o direito e o dever de sempre informar com rigor e independência o mundo em que habitamos com verdade e justiça.
Severino Olim