Será normal o Estado recusar apoios a quem tem dívidas fiscais e à Segurança Social?
A proposta do Governo da República para a nova plataforma de reembolsos do subsídio de mobilidade aérea para residentes na Madeira e Açores faz depender a atribuição deste apoio público da ausência de dívidas à Autoridade Tributária e à Segurança Social. A notícia foi avançada ontem na edição impressa do DIÁRIO, já com críticas da parte do deputado madeirense à Assembleia da República Carlos Pereira (PS), que classificou “inaceitável” esta exigência. Entretanto, deputados do JPP e do Chega também criticaram esta alteração de regras. Nas redes sociais, as opiniões dividem-se. Mas será normal o Estado Português exigir que os candidatos a apoios públicos tenham a sua situação contributiva regularizada?
A ideia de que o Estado possa efectuar pagamentos a cidadãos ou empresas que estejam em incumprimento perante a Autoridade Tributária ou a Segurança Social levanta dúvidas recorrentes, sobretudo em contextos de contratos públicos, apoios financeiros ou indemnizações.
A exigência de regularidade fiscal e contributiva está consagrada em vários diplomas legais. Desde logo, o diploma que estabelece o regime da administração financeira do Estado (Decreto-Lei n.º 155/92 de 28 de Julho) determina que “os serviços integrados e os serviços e fundos autónomos, incluindo designadamente as instituições públicas de ensino superior universitário e politécnico e aquelas cuja gestão financeira e patrimonial se rege pelo regime jurídico das entidades públicas empresariais, antes de efectuarem pagamentos a entidades, devem verificar se a situação tributária e contributiva do beneficiário do pagamento se encontra regularizada”, mais especificamente nas situações em que “o pagamento em causa se insira na execução de um procedimento administrativo para cuja instrução ou decisão final seja exigida a apresentação de certidão comprovativa de situação tributária ou contributiva regularizada”. Este mesmo diploma estipula que quando se verifique que o credor não tem a situação tributária ou contributiva regularizada, as entidades públicas devem reter o montante em dívida, com o limite máximo de retenção de 25% do valor total do pagamento a efectuar, e proceder ao seu depósito à ordem do órgão da execução fiscal.
No domínio da contratação pública, o Código dos Contratos Públicos reforça esta exigência. A lei impede que entidades em dívida à Autoridade Tributária ou à Segurança Social, seja em Portugal seja no seu país de origem, celebrem contratos com o Estado, salvo em situações excepcionais expressamente previstas. Na prática, isto significa que quem não estiver em situação regular não só não recebe como, à partida, nem sequer pode contratar com o Estado.
Estes princípios gerais estão incorporados na legislação e regulamentos de diversos programas de apoios públicos. Por exemplo, o Regulamento de Atribuição de Bolsas de Estudo a Estudantes do Ensino Superior refere que só tem acesso à bolsa de estudo quem “apresente a sua situação tributária e contributiva regularizada”. Este diploma especifica que, mesmo tendo dívidas de impostos ou à Segurança Social, a situação do estudante pode ser considerada “regularizada” desde que: esteja a proceder ao pagamento do(s) calote(s) em prestações através de plano de regularização; tenha reclamado, recorrido ou impugnado judicialmente aquelas dívidas.
Curiosamente, o requisito da “situação tributária e contributiva regularizada” não consta da resolução com o Regulamento de Bolsas de Estudo do Governo Regional da Madeira para apoio à frequência de cursos superiores.
A nível nacional, contudo, a regra tem sido outra. É disso exemplo o Programa E-Lar, promovido pelo Fundo Ambiental, que apoia a substituição de equipamentos a gás por fornos, placas, fogões e termoacumuladores eléctricos. No momento da candidatura, o candidato tem de apresentar a sua situação contributiva regularizada junto da Autoridade Tributária e Aduaneira e perante a Segurança Social.
Voltando à questão inicial, apesar da contestação à pretensão do Governo da República de vedar o acesso ao subsídio de mobilidade a quem tenha dívidas tributárias ou à Segurança Social, a verdade é que essa é a regra geral. Por determinação legal, o Estado não pode pagar a quem não tenha a situação fiscal e contributiva regularizada, embora existam excepções legalmente previstas e mecanismos de compensação. É o caso do subsídio de desemprego, que depende de carreira contributiva e dos pressupostos legais do regime, não de uma certificação de regularidade contributiva/fiscal como condição prévia e obrigatória. O mesmo se aplica ao abono de família, que é uma prestação de natureza social ou familiar cujo critério principal é a condição de recursos dos beneficiários.