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Crónicas

Previsibilidade

1. [o que separa a liberdade do caos, a confiança da farsa e uma terra séria de uma terra a fingir que o é]

A previsibilidade é uma dessas palavras que ninguém ama. Não tem perfume, não tem cor, não se grita nos comícios, não se imprime em cartazes. É uma palavra sem aplauso. Mas é a palavra que sustenta as outras, a que devia impedir a Madeira de cair no abismo da improvisação, a que dá corpo à ideia absurda de futuro. O que nos destrói, quase sempre, é o improviso: a mania de começar tudo de novo, de rasgar o que estava feito, de prometer que agora sim, é que vai ser diferente. E depois vem o vazio. E depois vem o espanto de que nada mude. Porque, sem previsibilidade, somos uma casa construída sobre a maré: mal o tempo muda, o chão some-se e só fica o barulho do vento nas janelas.

Um governo previsível é uma raridade. Não o governo que repete slogans, mas o que age sem sobressalto, o que cumpre o que prometeu, o que fala pouco e faz o que disse. A previsibilidade, em política, é a forma mais discreta da inteligência. É a recusa do improviso como método, da demagogia como linguagem, da euforia como programa. É o silêncio das instituições que funcionam, o tédio que sustenta a confiança. É saber que a política não é teatro, que o poder não é um brinquedo, que as leis não são um capricho. O problema, há muito tempo, é que se governa como quem escreve uma crónica: ao sabor do dia, da emoção, do telejornal. O resultado é um país exausto, com a memória de mil reformas que nunca chegaram a existir, de mil promessas que morreram ao nascer.

A previsibilidade é também uma ética. Obriga à contenção, à disciplina, ao respeito pelo tempo dos outros. Obriga o político a perceber que isto não é tudo dele, que o Estado não é uma extensão da sua vaidade. Obriga a uma forma de humildade que poucos suportam, porque significa renunciar ao protagonismo e aceitar a lentidão das coisas que duram. É mais fácil o deslumbramento do anúncio, o prazer do microfone, o gozo da novidade. Mas é na previsibilidade, e só nela, que o cidadão acredita. Porque é nela que pode planear, trabalhar, investir, confiar. É nela que a liberdade se faz rotina, e a rotina é o outro nome da estabilidade.

Na economia, previsibilidade é o nome secreto da coragem. Nenhum empresário aposta onde o tabuleiro muda de forma. Nenhum investidor constrói sobre areia. O Estado errático é o pior dos inimigos: não o que rouba, mas o que hesita; não o que diz não, mas o que ora promete, ora desdiz, ora muda de regras porque alguém se lembrou de uma ideia luminosa. O capital não foge do risco, foge do absurdo. E o absurdo é um Estado que não sabe o que quer. O dinheiro, como as pessoas, procura sossego, alguma paz, um lugar onde as leis durem mais do que um ciclo eleitoral. Quando não há previsibilidade, não há crescimento: há apenas sobrevivência, remendos, planos que nunca se cumprem, relatórios que justificam o fracasso.

E é curioso, porque a previsibilidade é o contrário daquilo que os políticos modernos acham que dá votos. Eles acreditam que a novidade constante, o “choque”, a reforma permanente, é sinal de dinamismo. Não percebem que o que cansa o país é justamente essa sucessão de fogos-fátuos, de anúncios que duram uma semana, de projectos que mudam de nome antes de começar. A previsibilidade é, na verdade, uma virtude contra-revolucionária: é o acto sereno de dizer “não” à pressa, “não” ao improviso, “não” ao voluntarismo idiota. É a sabedoria antiga de quem sabe que nada sólido nasce do entusiasmo.

Mas há ainda uma dimensão mais funda. A previsibilidade é uma forma de amor. Amor pelo país, pelas pessoas, pelo tempo que não se pode desperdiçar em experiências políticas. É o amor discreto de quem protege o futuro, de quem planta uma árvore sabendo que não verá a sombra. É o contrário do amor narcisista de quem governa para ser lembrado. O governante previsível é aquele que não precisa de monumento, porque o seu monumento é a normalidade. E normalidade, entre nós, é coisa de luxo.

Num país previsível, a palavra “reforma” não assusta, porque não é sinónimo de desastre. Num país previsível, o cidadão confia no Estado, porque o Estado não o engana. Num país previsível, a economia cresce, não por milagre, mas por método. Num país previsível, o futuro é uma hipótese concreta, e não uma fantasia. É por isso que a previsibilidade é a forma mais alta de liberdade. Porque permite viver sem medo, e o medo, em política e em economia, é sempre o começo do fim.

Sem previsibilidade, o ficamos entregues à nossa velha doença: a improvisação como vício, a esperança como anestesia, o desastre como costume, a saudade do que nunca fomos. E talvez seja essa a nossa maior tragédia: termos aprendido a viver sem previsibilidade como se fosse normal. Como se o caos fosse uma herança genética. Como se o acaso fosse destino.

2. O Betão é Chique
[crónica sobre uma ilha que se cobriu de cimento para esconder o vazio]

Na Madeira, o horizonte acabou. Não há linha de mar que sobreviva sem ser cortada por um muro, uma varanda de vidro, um prédio de apartamentos que se parecem todos com um caixote de sapatos mal envernizado. O horizonte morreu devorado pelo cimento, pelas gruas, pela pressa de mostrar serviço, e ficou apenas uma sucessão de lajes que se empilham nas encostas como um exército de blocos uniformizados. A paisagem não desapareceu de repente, foi sendo sufocada lentamente, como quem tapa o nariz de alguém com a mão até o fôlego acabar. O que era verde transformou-se em escombro, o que era encosta virou prédio, o que era mar foi domesticado a marretadas, com molhes, plataformas e esporões, como se o Atlântico tivesse de ser educado.

O “jardim do Atlântico”, lembram-se?, a frase feita de brochura turística, vendida a quem vinha de fora com a ingenuidade de achar que flores, hortênsias e buganvílias podiam resistir ao apetite insaciável do betão, já não existe. O jardim foi substituído por uma feira de estaleiros, um catálogo de empreiteiros esfomeados, uma galeria de patos bravos que acreditaram que modernidade era enterrar tudo debaixo de toneladas de cimento. Agora o chique é a laje polida, o guarda inox, a marquise com vista para outra marquise.

Se há espaço, tapa-se, se não há, inventa-se. Uma serra? Fura-se. Um vale? Enche-se. Uma ribeira? Cobre-se. Uma falésia? Prega-se-lhe um hotel em cima. Uma paisagem agrícola? Tomem lá um club house de um campo de golfe. A ilha tornou-se um tabuleiro de xadrez para engenheiros e achistas medíocres, e a jogada é sempre a mesma: despejar, despejar, despejar. O resultado é uma acumulação interminável de caixas anónimas, avenidas, estacionamentos enfiados nas tripas da montanha, túneis a multiplicarem-se como se o território fosse um queijo suíço. Até o mar foi transformado em acessório: há que segurar-lhe a rebeldia, travá-lo, pô-lo a render, como se fosse um vizinho barulhento que se cala com um muro mais alto.

O betão não é só material, é gramática. A gramática do poder, da política, da eternidade fingida. Quem governa ergue, quem quer ficar na fotografia cimenta. A política na Madeira escreve-se em metros cúbicos, não em ideias. A obra é o argumento, o túnel é a promessa, a rotunda é o programa de governo. O povo aplaude, habituado a confundir cimento com futuro, a acreditar que cada laje inaugurada é mais um degrau na escada do progresso. E as inaugurações, com fita vermelha e tesoura dourada, são o ritual religioso desta religião sem alma, onde os santos são presidentes e os milagres se medem em toneladas despejadas.

É este o chique madeirense: inox reluzente, fachadas lisas, varandas iguais às da fotografia do catálogo. A ostentação provinciana de quem acredita que a modernidade cabe numa parede nua. O bordado já não interessa, o verde é considerado um desperdício, a tradição é coisa para folclore de domingo. O luxo está no cimento, na piscina de cobertura com vista para outra piscina de cobertura, na garagem subterrânea que cheira a humidade. O betão tornou-se o novo bordado, exportável, vendável, eterno, até ao dia em que rachar.

Suba-se hoje a qualquer miradouro: já raramente se vê o mar, nem o vale, nem a encosta. Vê-se a contabilidade dos blocos, o inventário das garagens, a geometria triste dos prédios de cinco andares. O verde, quando aparece, é clandestino, quase envergonhado, sobrevivente em manchas pequenas como se pedisse desculpa por ainda existir. O Atlântico, que deveria ser infinito, é hoje apenas o pano de fundo dos prédios e hotéis colados à falésia. A Madeira trocou o jardim pelo estaleiro, a paisagem pela via, a memória pelo cimento.

E, no fim, o que sobra? Uma ilha inteira feita de betão, governada por patos bravos que acreditaram que eternidade é sinónimo de betoneira. O ruído metálico das gruas tornou-se música de progresso. O cheiro a cimento fresco tornou-se perfume oficial. E a sombra de uma árvore, se ainda existe, não é descanso: é milagre.