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Crónicas

A Fraude Digital da Madeira

[O Governo que Anuncia Tudo e Não Conclui Nada]

O Governo Regional da Madeira encontrou na “moeda digital” uma das suas óperas bufas preferidas, um teatro de cartolina onde os cenários brilham ao sol por cinco minutos e depois, com a mesma rapidez com que o vento levanta o pó nas veredas velhas da ilha, se desfazem em nada. Gasta-se o que há e o que não há, não para construir, mas para encenar.

A única moeda que circula com eficácia é a dos contribuintes, arrancada do bolso como quem arranca um dente sem anestesia, para sustentar promessas que soam a modernidade e cheiram a naftalina. Lembro-me de os ver, aprumados, a falar de futuro como se o futuro fosse um perfume que se borrifa na lapela e resolve tudo, e as câmaras a apanharem o ângulo certo, e a plateia aplaudir, e no dia seguinte a ressaca, a explicação de que não era bem assim, que a realidade tem destas coisas ingratas, que a lei europeia, que o enquadramento, que a competência de terceiros, que aguardemos.

Em Miami, em 2022, o Presidente de peito cheio, os olhos de quem viu a luz, a repetir a liturgia do milagre como se bastasse dizer para que o milagre acontecesse. “Adoptamos o Bitcoin”, disse, e eu fiquei a pensar naquelas procissões de aldeia onde se prometem curas se o santo for transportado à volta do adro, e todos acreditam porque precisam.

O euro, apesar da catequese, continuou euro, imóvel como um penedo, e a isenção que se vendia como nova era antiga. A fotografia do palco ficou bonita, isso ficou, o brio, o sorriso, o gesto de estadista de papelão, e depois o vazio, o mesmo vazio de sempre, uma sala arrumada à pressa depois do banquete, migalhas no chão, copos por lavar, e ninguém para ficar a fazer o trabalho que não apetece a ninguém, o trabalho de verdade que não dá entrevistas nem selfies, o trabalho de pregar tábuas, de aparafusar parafusos, de aceitar que o futuro não vem por decreto nem por viagem de avião.

Depois veio a “Osean”, baptizada com nome de sabão líquido, uma criatura de laboratório que prometeram à ilha como se fosse um sol novo a nascer por detrás do Cabo Girão, e a Universidade em bicos de pés, e uns parceiros de tecnologia com vocabulário de brochura, e o Governo a acenar como quem diz a uma criança que amanhã vamos à praia.

Falava-se de retenção da riqueza, de turistas a pagar com códigos esquisitos como quem abre uma porta mágica, de descontos, de uma aplicação que resolveria a economia como um remédio milagroso. E eu via os velhos que antigamente jogavam ao Cassino no Campo da Barca, encostados às mesas de betão, a ouvir aquilo como quem escuta um rádio com chiadeira, e a pensar se o desconto também servia para a conta do talho, e se o código funcionava quando a rede caísse, e se a fortuna da ilha estava afinal escondida dentro de um telemóvel.

Durou o que duram as ilusões quando tocam no aço frio da lei. O Governo limpou as mãos. Não compete ao Governo fazer criptomoedas, disseram, como se de repente se lembrassem de que os santos de barro não fazem milagres fora da prateleira da sacristia. Ficou a espuma, o glitter na carpete, a palavra protótipo a servir de mortalha, e a sensação antiga de que nos venderam um mundo inteiro em duas sílabas e um comunicado, e que o mundo não cabe em duas sílabas nem em comunicado nenhum.

Seguiu-se o estudo, encomendado com a solenidade com que se encomenda uma missa por alma, e pago com a devoção habitual, porque as obras de misericórdia também se fazem em papel timbrado. Cem mil euros mais IVA, quatrocentos e cinquenta dias de gestação, e no fim um relatório que ninguém queria ver à luz do dia, talvez por vergonha, talvez por superstição, como quem tem medo de que a criatura nascida de tanto juramento não saiba ainda respirar. Foi preciso que a oposição arrombasse a arca para sabermos que a arca tinha dentro um manuscrito e pó.

O resultado prático foi este silêncio de hospital ao fim da tarde, quando os corredores se esvaziam, e se ouvem máquinas a apitar dentro dos quartos, e a noite aproxima as suas cadeiras. Não houve moeda, não houve plataforma, não houve aplicação, não houve sequer a humildade de dizer falhámos aqui, aqui e aqui, vamos começar de novo com menos trombetas e mais martelos.

Houve papel, contabilisticamente perfeito, e a sagrada circulação da factura, essa nunca falha, como a água que encontra sempre o caminho da ravina para o mar. E ficou a ilha de carpete lavada de novo, pronta para a próxima apresentação, porque a liturgia do poder pede sempre catálogos novos, palavras novas, um verniz novo sobre a mesma madeira rachada.

Em 2025 abriram a gaveta, sopraram o pó, puseram a máscara de oxigénio ao cadáver e chamaram-lhe fase bastante avançada, o eufemismo preferido de quem não quer admitir que a casa continua sem telhado e chove na sala. Cento e oitenta mil euros despendidos, disseram, como quem exibe cicatrizes à mesa do café, orgulhoso de ter sobrevivido a uma guerra que só existiu na imaginação. E agora aguardamos pelo Banco de Portugal, a grande entidade tutelar que absolverá os pecados do projecto, que dará o crisma da autorização, que transformará a água em vinho e o PDF em pão.

A autonomia, essa palavra que cheira a mar e a terra lavrada, essa palavra de sal, ficou reduzida a um verbo no infinitivo, aguardar, que é o contrário de governar. A ilha de mãos cruzadas à porta do patriarcado, à espera de que nos digam se podemos brincar na areia, e nós a fingir que isto é ousadia, que isto é estratégia, que isto é futuro, quando é apenas a mesma dependência antiga, agora embrulhada em inglês técnico e promessas de desconto para turistas.

No meio desta peça com muitos actos e nenhum desfecho, anunciaram em Amesterdão um Centro de Negócios Bitcoin, um hub sem corpo, sem sede, sem gente, uma palavra estrangeira que brilha como concha ao sol e por dentro está vazia. E novamente a fotografia com as letras grandes por trás, e os nomes famosos, e o peito cheio de vento, e uma conferência com cinco mil criaturas a passear por entre bancas, e música, e cinema, e uma euforia que dura três dias e se desfaz como espuma quando o ferry apita para Porto Santo e a vida volta à sua gravidade de sempre.

No dia seguinte, os cartões Visa nos terminais, o MBWay a fazer aquele som de recibo que nos dá a paz de espírito de quem pagou e foi pago, e a suposta revolução a dormir a sesta num sofá de veludo gasto. O que fica destas feiras de milagres é o mesmo que fica da chuva de Agosto, o cheiro bom a terra molhada e pouco mais, e a certeza de que os campos não se regam com cheiros nem as barrigas se enchem com cartazes. A ilha precisa de cais que funcionem, escolas a sério, consultas que não demorem meses, casas onde caibam famílias, e a conferência não compra nada disto, a conferência é um fogo-de-artifício que nos distrai cinco minutos e depois deixa a noite ainda mais escura.

E, para provar que o futuro chegou, repete-se a lengalenga dos sessenta estabelecimentos que aceitam Bitcoin, sessenta numa ilha de milhares, uma gota contada ao milímetro para fingir oceano. Imagino a dona do minimercado a aprender a carteira digital como quem aprende um bordado novo, paciente, atenta, e o turista que não tem paciência para experimentar nada do que não conhece, e o saldo em moedas virtuais a ficar esquecido no telefone entre o aplicativo do tempo e a fotografia do cão.

Ninguém vive em Bitcoin, ninguém vem à Madeira por causa do Bitcoin, ninguém muda a lista de compras para caber no Bitcoin. É um número posto na lapela para dar conversa, uma estatística que se recita como quem reza um terço em noite de trovoada, para ver se a casa não cai. E, no entanto, a casa continua a precisar de telhas de barro, de ripas de madeira, de pedreiros que sabem quanto mede um metro, não de números que dançam nos comunicados até se confundirem com poeira.

A história toda, quando se apagam as luzes e as cadeiras ficam tortas como ficam as cadeiras no fim de um velório, é esta: propaganda sem carne, estudos comprados como coroas de flores, viagens para mostrar modernidade de plástico, a foto com o estrangeiro célebre que no dia seguinte já não lembra o nome da rua onde dormiu no Funchal.

O Governo especializou-se em apresentar o que nunca chega a concluir, nessa arte antiga de erguer andaimes de promessa à volta de prédios que não se constroem. A moeda digital é a metáfora perfeita desta governação, um barco pintado à pressa que nunca tocou água, um roteiro de cinema sem película, um mapa sem ilha.

O pano cai, as mãos ainda aquecidas do aplauso esfregam-se uma na outra para espantar o frio, e o que fica é a mesma sala de sempre, as infiltrações no tecto, o candeeiro a piscar, a torneira que pinga, a vida que espera soluções que não cabem em slogans. Apresentaram tudo, com pompa e luzes, e não concluíram nada. E é isto, com a tristeza mansa das coisas repetidas, que mata uma terra devagar.