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Explicador Madeira

O crime de ‘exposição ou abandono’ e o de ‘omissão de auxílio’

Hoje, logo pela manhã, rapidamente se propagou a notícia do aparecimento de um cadáver, na zona do Pilar, que terá sido deixado no local por um taxista, durante o desempenho da sua actividade profissional.

Mesmo desconhecendo os contornos do acontecimento, logo um conjunto alargado de pessoas se apressou a condenar a atitude e acção do taxista, havendo mesmo quem tenha anunciado a pena que lhe deveria ser imposta.

Em praticamente todos os comentários, era afirmado que o taxista abandonou o homem, ao que se sabe, de 37 anos e médico de profissão.

Nesta análise e na explicação que passamos a dar, não está implícita qualquer afirmação sobre eventuais responsabilidades do taxista em causa ou da pessoa que faleceu. Aqui, pretende-se somente clarificar alguns conceitos.

Ora, a palavra abandono, além do significado comum, é também tipificação de um crime, cuja definição não corresponderá na íntegra ao conceito popular evidenciado quando o termo é usado.

Vejamos, à luz da Lei, no caso do Código Penal (CP), como é que o crime de abandono aparece.

O artigo 138.º do CP é sobre o crime de ‘exposição ou abandono’ e determina:

1 - Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa: a) Expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou b) Abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.

2 - Se o facto for praticado por ascendente ou descendente, adoptante ou adoptado da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.

3 - Se do facto resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.”

Os apontamentos do curso de Direito, da Universidade Autónoma de Lisboa, explicam que, no crime em causa, o bem jurídico protegido é a vida humana.

Na exposição, é dito (aqui de forma muito resumida) que “o agente tem de expor a pessoa em lugar que a sujeite a uma situação de que não se possa só por si defender” ou “o agente tem uma conduta que faz nascer para a vítima uma situação de perigo”.

Quanto ao abandono, é dito que “consiste em o agente abandonar a vítima sem defesa sempre que tenha um dever de a guardar, vigiar ou assistir.

O abandono tem de ser realizado por um agente sobre o qual impenda um especial dever – com o que se trata de um crime específico próprio.

Este dever tem de ser pré-existente à situação de abandono e deve estar em directa conexão com a ausência de defesa da vítima; ou seja: é necessário que o dever que sobre o agente impende tenha por finalidade garantir o auxílio para situações de risco em que incorpora a vítima.

Do abandono tem que resultar uma situação de agravamento de riscos para o qual a vítima não tenha, por si, capacidade de se defender.”

Ainda sobre o abandono, um acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Proc. nº 78/20.0PHVNG.P1) veio deixar claro que “o abandono ocorre não só quando o agente abandone o local, mas também quando, mantendo-se junto à vítima, omita qualquer acto de auxílio para com aquela.”

O crime de abandono pode ou não concorrer (ocorrer em conjunto) com o de ‘Omissão de Auxílio”, sendo essa uma agravante. Mas, para se verificar, “o agente, além de não prestar auxílio, deslocar a vítima para outro local, criando ou agravando o perigo para a vida da vítima” deve deixar de prestar auxílio, nos termos do artigo 200.º do CP, “em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa.”

Mas para haver agravamento, não tem obrigatoriamente de haver concurso com outro crime. O acórdão já referido esclarece: “A agravação da pena decorrente da ocorrência de um resultado mais grave, morte da vítima ou ofensa à integridade física grave, pressupõe a possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência, embora decisivo para a verificação do crime preterintencional é que o resultado produzido seja imputável à situação de perigo criada e diretamente conexionada com a ausência de capacidade de defesa por parte da vítima.”

Casos mediáticos

Existem vários casos muito mediáticos de condenações pelo crime de exposição ou abandono.

Um dos mais recentes aconteceu em Janeiro de 2023, quando o Tribunal de Guimarães condenou António da Silva, pela morte de Fernando Ferreira. Foi condenado a sete anos de cadeia.

Ainda assim, ia acusado de um crime de homicídio qualificado, pelo que a condenação por exposição ou abandono até lhe foi favorável. No entanto, o Tribunal da Relação de Guimarães mandou repetir o julgamento.

Apesar deste caso, as condenações mais comuns pelo crime de exposição e abandono são de âmbito familiar.

A 4 de Janeiro de 2023, um acórdão do Tribunal da Relação do Porto (Proc. nº 78/20.0PHVNG.P1) condenou a pena de prisão de três anos um filho que “pelo menos até ao dia 19 de Fevereiro de 2020, (…) deixou a sua progenitora sozinha na aludida residência, sem prestar à mesma os cuidados de alimentação, água e sem cuidar da sua higiene pessoal, ficando a ofendida, desidratada, vestida com roupas molhadas e semi-nua, com hematomas que não foram tratados e rodeada de fezes e urina, pelo menos por mais de 24 horas”. O Tribunal de Guimarães havia absolvido o arguido.

Em Dezembro de 2017, um casal de chineses, que havia deixado a filha de cinco anos sozinha em casa, enquanto foi ao casino, foi condenado pelo crime em análise, agravado pelo facto de a criança ter caído do 21.º andar e morrido.

A queda e morte foi em 2016.

A 20 de Março de 2023, a RTP noticiou que a PSP de Setúbal identificou “um casal suspeito do crime de exposição ou abandono de três crianças menores, entre os 2 e os 6 anos, que, entretanto, já foram retiradas aos progenitores”.

Não conseguimos localizar qualquer, caso na Madeira, em que tenha havido julgamento ou sequer acusação do crime de ‘exposição ou abandono’. Ainda assim, esse crime pode ter sido imputado ao empresário Paulo Nóbrega, em 2003, segundo a PJ, citada pelo Jornal da Madeira de 12 de Março de 2003.