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Crónicas

Lisboa, esse lugar onde ia ser tudo diferente

O dia em que deixei a Madeira foi também o momento em que as minhas origens passaram a definir-me

Eu deixei a Madeira numa manhã de Janeiro, daquelas bonitas e frias e lembro-me de tudo o que aconteceu nesse dia, foi como se tivesse tirado fotografias. Os detalhes estão todos na minha cabeça desde o momento em que acordei na casa do Laranjal até à hora em que me deitei num quarto alugado num apartamento do Casal de São Brás, na Amadora.

A minha mãe ficou a chorar na gare do aeroporto, na antiga, enquanto eu me atrapalhava com os sacos e a escada rolante que se mexia debaixo dos meus pés. O medo de cair fez-me olhar apenas de relance para o que deixava: a minha mãe, o meu pai, o meu tio Humberto, a minha comitiva de despedida.

E lá fui com os sacos para a pista, lá entrei no avião e, sem dar por isso, estava no ar, a voar, e não era como tinha imaginado, não sabia que podia dar aquele formigueiro nas pernas e na barriga. A hospedeira falou comigo e eu confundi-me com aquele português rápido, que começava e acabava antes de perceber as palavras.

Do outro lado daquela viagem - daquela hora e meia a ver as nuvens e o mar - esperava-me uma cidade cheia de pressa, com pessoas a correr para o metro ou a sair do metro, cheias de pressa a falar, a atravessar a rua. E lembro-me de me espantar com aquela visão de ruas largas e prédios altos assim que deixei o aeroporto de Lisboa.

O ar frio que batia na cara era-me estranho e o sol não aquecia, o calor da Madeira ficara para trás, mas as saudades, a vontade de correr para o abraço da minha mãe só chegariam mais tarde, quando percebi que a minha vida era ali, em Lisboa. Não era a cidade que tinha fantasiado e idealizado, um lugar romântico, com cafés e um ambiente cultural fervilhante.

Lisboa de 1990 não era isso, mas eu diverti-me naquele primeiro dia. Foi bom andar de comboio, ver os desenhos dos carris e a teia de fios por cima da linhas e aquela sensação de entrar na estação do Rossio. Eu nunca visto um comboio, nem sabia bem o que era o metropolitano e lembro-me do medo de ficar entalada na porta ou de cair à linha e morrer.

Nesse dia também me meti no eléctrico para ir comer um cozido em Alfama, num restaurante com toalhas de plástico e uma latada de vinha. Até o almoço me confundiu nesse dia, aquelas carnes e enchidos com nomes de que nunca tinha ouvido falar. Nessa noite, à hora em que me fui deitar, no quarto alugado na Amadora, era já outra pessoa.

Eu era ainda a filha do mestre Gabriel, a miúda da casa na curva apertada, a mais nova de uma família de muitas mulheres, nem rica, nem pobre, mas para as pessoas que estava prestes a conhecer seria para sempre a Marta da Madeira, exótica e estranha, com memórias de calor e um modo de falar esquisito.

Em Lisboa era tudo diferente - a comida, as pessoas e os nomes que davam às coisas - e eu queria abraçar esse mundo novo, crescer e ser outra, mas para mim o dia em que deixei a Madeira foi também o momento em que as minhas origens passaram a definir-me.