Crónicas

A música a tocar na telefonia

Mas isso era nos dias normais, naquelas tardes só se pensava no calor e no silêncio perturbador

O silêncio era o mais inquietante e perturbador daquelas tardes, aí pelo início de Julho, quando o sol abrasava e o ar tremia no fim do caminho. Os carros deixavam sulcos no alcatrão derretido e não se ouvia nem o ladrar de um cão ou o cantar de um galo. Nem ali, nem algures, num galinheiro dos muitos que havia naquela teias de casas, fazendas, caminhos, becos, degraus e veredas que formavam a vizinhança.

O mundo adormecia numa espécie de encantamento provocado pelo calor. As minhas tias e a minha mãe juntavam-se à sombra da ameixeira grande da entrada e não falavam, nem de assuntos banais, nem dos outros. Se lhes era difícil pensar em questões simples, devia ser ainda complicado usar aqueles códigos estranhos a que recorriam quando queriam comentar o casamento à pressa de alguém.

O casamento à pressa queria dizer que a noiva estava grávida e nós estávamos fartos de saber o que era, mas devia ser pudor ou vergonha ou hábito. Eu tinha 13 anos e o meu irmão 16 e as minhas tias e a minha mãe continuavam a ver-nos como dois miúdos, mais ou menos insolentes e inquisidores, com perguntas para as quais não tinham resposta. Era cansativo aturar-nos. Ou fazíamos perguntas ou andávamos à porrada ou estávamos a fazer experiências pouco proveitosas.

Mas isso era nos dias normais, naquelas tardes só se pensava no calor e no silêncio perturbador. Às três da tarde, no pico do sol, nenhum de nós queria sequer pensar ou falar, fosse a bilhardice, a preocupação do dinheiro, a última zanga da minha mãe com a minha tia Conceição ou se tinham mandado rezar missa pelo bisavô que viveu 100 anos e o tio cambadinho.

O meu irmão não estava em condições de tirar as tias do sério por causa da existência de Deus e talvez não lhe desse jeito já que queria ir acampar e, de caminho, queria uma faca de mato e chapéu igual ao Indiana Jones. Da minha parte, entretida a ler um romance daqueles de cordel esquecido em cima da mesa do quarto da televisão – em que elas e eles eram todos bonitos e tinham nomes em inglês -, sentia que me faltavam as forças para rebater a ideia da minha mãe de me fazer mordoma de Nossa Senhora, com direito a bandeira em casa.

O bom era a escola ser longe e não ter por perto colegas, daqueles finos, filhos de doutores e de pessoas da cidade que, certamente, nunca tinham ouvido falar de mordomas e de sair na procissão. Ou pior, de ir à missa cantada num domingo de calor, aquela eternidade de cantorias, cheiro a incenso e transpiração que quase obrigava a dissociar-se, a fugir, pelo menos em pensamento.

E o silêncio permanecia tarde adentro até alguém ligar a telefonia e se ouvir, ao longe, chegado do terreiro de um vizinho, a voz de Stevie Wonder a cantar em inglês que tinha ligado para dizer que amava a senhora que tinha atendido a chamada. O romantismo era coisa de estrangeiros, só podia ser. O que a minha mãe faria se soubesse que andava a aumentar a conta do telefone de casa por ligar a um namorado só para falar de amor.

O amor, se um dia me apaixonasse, teria de ser vivido de outra maneira. Eu não sabia como, mas também não era importante. Tinha só 13 anos, estava uma tarde de calor e a ideia de não pensar era refrescante.