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O Cerco

Acordo a sussurrar, sem que acorde a minha gente, Stevie Wonder a cantar Love’s In Need Of Love Today. Lembro-me, como se fosse hoje, quando, em 1976, o nosso pai chegara de viagem, missão de serviço a Dakar, com o duplo álbum Songs In The Key Of Life.

Lembro-me, depois disso, do meu irmão Antero, ido do Sal, ter convidado Katchás (Carlos Alberto Silva Martins) a visitar-nos em casa e como este músico ficara maravilhado com as gravações de Nha Gida Mendi e Mana Nha Culádia, duas expoentes da cantoria cabo-verdiana. Sobre Stevie Wonder, Katchás contara da sua dimensão política, que tinha composto a música You Haven’t Done Nothin’, protesto contra o Presidente Nixon e que almejava ir viver no Gana. Acordo assim hoje...cercado, se calhar pelos 100 anos de Henry Kissinger.

Acordo também a questionar certas dinâmicas, hoje cada vez mais sob afrontamentos e impactos, na produção e na reprodução das estátuas e monumentos, edições e colóquios, assim como dos tributos em forma de museu e toponímia, de filatelia e numismática, entre outros. Se calhar na esteira da nossa participação da 93.ª Feira do Livro de Lisboa.

Manda o pensamento lúcido, crítico e insubmisso questionar a contínua manipulação da memória histórica, do imaginário social e da significação cultural. Que espaços de conhecimento e de reconhecimento, para além da verborragia colonial e pós-colonial, para celebrar o Centenário de Amílcar Cabral? Que espaços para a incorporação da sua complexidade?

Os ataques de mísseis e de drones sobre Kiev trazem reminiscências dos bombardeamentos a Leninegrado, a Londres, a Hanói, a Beirute, a Alepo e à Faixa de Gaza, tempos e espaços diferentes, mas a mesma selvajaria do homem se manter o lobo do homem. Uma tragédia estarmos ainda a brincar de Clausewitz. Que a Arte nos salve!