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O “teto de vidro” musical

Na semana passada, uma notícia inesperada surpreendeu o mundo da música clássica. Uma mulher foi selecionada para ser o concertino da Orquestra Filarmónica de Berlim! Mas que notícia – e não estou a brincar! Pois é a primeira vez que uma mulher ocupa este posto desde a fundação dessa superconhecida e prestigiada orquestra, desde a sua fundação em 1882 – mais de 140 anos atrás! Aliás, foi necessário esperar um século inteiro até a primeira mulher, uma violinista, ter sido admitida para integrar esta orquestra, em 1982.

Foi então a violinista da Letónia, Vineta Sareika-Völkner, que conseguiu o lugar cobiçado do concertino, depois de ter integrado a orquestra uns meros 9 meses. Ela já possuía uma carreira marcante, tendo sido concertino em várias orquestra na Bélgica, primeiro violino do Quarteto Ártemis durante 10 anos, e laureada do Concurso Internacional da Rainha Isabel da Bélgica. Curiosa e coincidentemente, esta nomeação ocorreu apenas uns 5 meses depois de ter sido estreado o filme “Tár”, que conta (num voo, por enquanto bastante atrevido, de ficção puríssima) a história da primeira maestrina principal da Orquestra Filarmónica de Berlim.

A história de preconceito e desigualdade de géneros nas orquestras não é, então, nada de novo. A Filarmónica de Viena, mais uma orquestra de prestígio quase inigualável, foi fundada em 1842, e foi desde sempre embaraçada pela história, tradição e o processo complicado de recrutamento. Apenas 19 dos 145 músicos permanentes desta orquestra são mulheres. Até 1997 nem foi permitido uma mulher concorrer para um lugar nesta orquestra. A primeira mulher com uma posição permanente, uma violetista, entrou em 2003, e criou a sensação no país aparecendo sem anúncio prévio num concerto de Ano Novo. Havia já uma harpista, mas essa esteve a tocar na orquestra durante uns 25 anos antes do nome dela aparecer pela primeira vez, em 1997, numa folha de sala e mesmo nas transmissões televisivas e gravações, havia a instrução de mostrar apenas as suas mãos.

O procedimento concursal nesta orquestra pode conter até 5 passos, com um período de prova de 2 ou 3 anos. Ainda em 2019, uma flautista italiana foi notificada, depois de ter passado um ano e meio dos dois anos previstos da prova, que não ia ser contratada, tendo perdido a votação entre os membros da orquestra, pelo que parece, por um voto. Ainda em 2003, um famoso músico clássico da Áustria opinou que “três mulheres na orquestra já são demais. Quando chegarmos aos 20 por cento, a orquestra será arruinada”. Não devem, então ter medo – ainda estão longe de atingir esta percentagem!

Primeiras mulheres entraram em orquestras principais apenas em 1913 – foi o caso das seis violinistas em Londres. Dezassete anos mais tarde, a primeira mulher entrou numa orquestra americana – uma harpista na Orquestra de Filadélfia, dirigida por Stokowski.

Não quer dizer que não havia mulheres nas orquestras antes, mas isso foram orquestras puramente femininas, tendo sido a primeira fundada em Berlim, em 1898, por Mary Wurm, uma aluna da grande pianista e compositor Clara Schumann, esposa de Robert.

Ainda em 1970, mulheres perfaziam apenas 5 por cento dos músicos orquestrais nos EUA. Hoje em dia, esse número já se aproxima à metade (na Europa a situação é bem pior). No entanto, mais de metade delas são violinistas, mas apenas 3 por cento tocam instrumentos “metais” – trompete ou trombone.

O padrão é muito semelhante no que diz respeito à presença das mulheres compositoras e mulheres maestrinas nos programas e palcos mundiais.

Sexismo, misoginia, preconceito, atitudes tradicionalistas – tudo isso continua a assombrar a arte cuja riqueza, eloquência e transcendência emocional não distinguem entre géneros, idades, profissões ou políticas. O “teto de vidro” está a estalar mas está longe de se partir. Até tive o problema de escrever “a concertina” no início, em feminino, para alguém não gozar com o pequeno acordeão!