A matança do porco e a matança da empatia
Os animais comem-se uns aos outros. É natural. Porém, o que tem distinguido o animal humano na sua constante reconstrução cultural e histórica, feita de muitas incoerências, subversões e estranhezas é a idealização de uma matriz ética e humanista, feita de valores e princípios inquestionáveis como o respeito, a liberdade, a compaixão, o bem-estar, a não-violência, a sabedoria... Tudo o que fira ou não dignifique estes valores tem que ser julgado ou combatido.
As tradições, o património material ou imaterial não é intocável nem é sagrado. Muito menos se só trouxer incivilidade, rudeza, desumanidade e dor. A cultura bebe do passado do seu melhor, mas é essencialmente futuro, mudança, criatividade, salvação do Mundo. Salvação pessoal, espiritual e salvação ou bem-estar efectivo do Planeta e de todos os que nele legitimamente vivem.
Independentemente de sermos descrentes ou crentes, muito do que se faz nesta quadra natalícia fere os depurados princípios da efeméride. O consumo, os excessos, as aparências, as desigualdades, não correspondem ao que poderia ser uma nobre comemoração, num Planeta tão debilitado, massacrado, injusto e desorientado.
A tradição da matança do porco é uma das práticas humanas mais carregadas de brutalidade. A maioria dos porcos são criados em lugares fechados e imundos, sem qualquer direito ao espaço na natureza ou socialização com os seus. No fim de uma ‘vida’, em que só existem como um produto, têm uma morte onde sentem toda a dor. Nem sempre é certeiro e rápido um último gesto fatal. Há todo um percurso que o animal faz até o matadouro, em que sente que algo ameaçador lhe irá acontecer e por isso emite aqueles grunhidos horríveis de desespero. Mas como se não bastasse ainda este calvário, faz-se uma festa, uma glorificação, uma vitória máscula, à volta da dor e morte de um animal. Um animal que a ciência comprova como ser dos mais inteligentes. (Se não fossse dos mais inteligentes, tal como há pessoas menos dotadas, mereceria igualmente a nossa sensibilidade e entendimento.)
Em relação a este tipo de práticas, acredito que possa ter para alguns, reminiscências ou memórias alegres associadas ao convívio, ao encontro e partilha. No meu caso pessoal, quando era criança, vivendo num contexto rural e me ter sido pedido para ir assistir à morte de um porco na casa de uma vizinha, lembro-me perfeitamente de estar a aproximar-me do local, ouvir os gritos do animal, os homens a fazerem todas as tentativas para imobilizá-lo, enquanto o animal resistia a toda aquela bestialidade de tentarem atingir-lhe o pescoço, o barulho ensurdecedor, a morte lenta a ser testemunhada por tantos à luz implacável do dia, muitos a sorrir e eu só a querer fugir urgentemente daquele lugar, aterrorizada e incrédula pela extrema violência. Fiquei realmente traumatizada com aquela situação e nem quero conceber como é possível deixar que as crianças assistam aquele tipo de carnificina, onde não se sente qualquer respeito pelo animal, nem pela sua morte que é de seguida comemorada!
Como tantas outras tradições no Mundo, que não nos enobrecem nem contribuem para transformar positivamente a urgência da mudança, por favor, acabemos de romantizar ou relativizar este tipo de práticas. Coloquemo-nos no lugar do animal e pensemos se queríamos aquela situação para nós ou mesmo se gostaríamos de ver o nosso estimado cão ou gato a passar pelo mesmo.
Laíz Vieira