Crónicas

Livros e viagens

A televisão era uma janela para o mundo, até para a história que, nesse tempo, persistia a ideia de que era preciso educar e ensinar

Passei 18 anos, quase 19, a imaginar as outras terras, todas as outras terras do mundo. Não se viajava de férias, não no Laranjal da minha adolescência a não ser nas peregrinações da paróquia a Lurdes e à Terra Santa. A gente da alta, como dizia a minha tia Alice, tinha o costume de ir ao Porto Santo ou ia uma semana a Canárias e aproveitava para comprar óculos Ray Ban, gel de banho e caramelos. Também compravam outras coisas como a minha prima Ana, que veio de lá carregada na vez que foi a Gran Canária e Tenerife.

Os países eram imagens de postais, de fotografias tremidas das excursões a Fátima e ao Norte de Portugal ou as ilustrações dos livros de Geografia e de História. E havia, claro, tudo o que a televisão transmitia do festival da Eurovisão aos Jogos Olímpicos e às cerimónias da Semana Santa em Roma. Eu via tudo, as notícias da guerra do Líbano, em El Salvador, mais as telenovelas e os documentários da vida selvagem.

A televisão era uma janela para o mundo, até para a História que, nesse tempo, persistia a ideia de que era preciso educar e ensinar. E, por isso, além das leoas e chitas a perseguir presas na savana, ficaram-me na cabeça as imagens do gueto de Varsóvia a arder e o napalm a consumir terras e pessoas no Vietname. A meio dos anos 80, a América decidira enfrentar o trauma e, todos os dias, de segunda a sexta, o meu irmão e eu víamos os dois documentários sobre a II Guerra e o Vietname, a antiga Indochina francesa.

A guerra, a nossa guerra, também tinha sido nas colónias, o Ultramar, e o Manuel, o ajudante de pedreiro do meu pai tinha estado lá. O meu pai admirava-lhe a inteligência, o gosto pelos livros e todas as coisas que sabia. Era talvez a maior fraqueza do meu pai, esse fascínio pelo conhecimento e pelas pessoas com saber e talento. O Manuel era servente, bebia demais e foi a primeira pessoa que conheci a quem o mato e os combates destruíram.

Mas, ao contrário do meu pai – que lia mal e tinha dificuldade em assinar o nome – era um homem com estudos, tinha o 2.º ano do liceu e podia ter sido muito mais do que ajudante, mas a cabeça ficou algures por África, quando seguia num camião e a sorte deixou-o vivo numa emboscada com muitas baixas. E era complicado, mas o meu pai apreciava as pessoas que sabiam e liam. À conta do Manuel lemos a Noite das Facas Longas, uma história de judeus e nazis, e o meu pai ficou ainda fascinado por livros, ciência, história.

E por música, arte e tudo o que, de alguma maneira, o fazia sonhar e o elevava para um lugar diferente das obras, da vida dura do trabalho, daquela rotina de acordar às seis e meia da manhã e chegar tarde, tão cansado e incapaz de ver as notícias na televisão antes de adormecer no sofá. Ou que o fazia beber às sextas, que aquilo era uma vida difícil onde não nos queria. Havia um mundo grande, cheio de terras diferentes e que mereciam ser vistas; havia outras maneiras de viver, pessoas capazes de apreciar um concerto, um livro, um quadro.

Pessoas diferentes dele, o mestre Gabriel, pedreiro de profissão, quase analfabeto, pouco viajado. O mesmo homem que me ensinou a gostar de livros e de viagens.