Crónicas

É uma caixa de Optalidon, se faz favor

O que a minha mãe não conseguia perceber é que eu era já de outra geração, que não se conformava com a dor

É bom ter presente que ninguém, naqueles anos, conseguia dispensar os analgésicos. Fosse por causa das dores de dentes ou pelas enxaquecas, a dor manifestava-se de várias maneiras, ficava a moer a resistência até se ceder aos dois Optalidon antes de encostar a um canto à espera de um alívio. Doer fazia parte dos dias, era algo certo num tempo em que, em caso de necessidade, pouco mais havia a fazer do que correr à farmácia e implorar uma caixa de pastilhas, de preferência fortes assim com o Dolviran ou o Optalidon.

E havia motivos para este desespero, de ossos partidos a dores ciáticas, embora no topo estivessem os dentes, dizia-se que era por causa da água, pobre em fluor e que nos fazia cáries. E também nos fazia fazer fila na Cruz Vermelha onde o dr. Paulino despachava pacientes aflitos, agarrados à boca e dispostos a tudo, até mesmo a extrair vários de uma vez e já resignados à ideia de que, no fim, havia próteses para repor o sorriso. Para sobreviver às múltiplas extrações lá se enfiava uns quantos Dolviran pela garganta abaixo e, por segurança, fazia-se reserva de comprimidos. Os analgésicos traziam paz.

E ficavam guardados na gaveta dos remédios, que, na verdade, eram poucos. Havia mais dor, mas menos médicos que, dizia o povo, só serviam para descobrir doenças. As pessoas viviam com o que tinham: a tensão alta, o colesterol, os maus dentes, a falta de vista e o mais que lhes tivesse calhado. Esse mundo, em que se arrancavam dentes sem anestesia, não sabia o que era a prevenção e olhava com desdém pessoas como a minha mãe que, por passar muitas horas a ouvir os programas de saúde na rádio, decidiu colocar o nosso futuro nas mãos dos médicos da Caixa.

O meu irmão livrou-se de aprender a escrever com a mão direita porque o dr. Castanheira disse que não se devia contrariar quem nascia canhoto e também explicou que as crianças que faziam chichi na cama não se tratavam à bruta. E com isso libertou-me das receitas esquisitas da vizinhança que afiançavam que uma surra com urtigas resolvia a questão. Foram os médicos que nos endireitaram os pés e os joelhos com botas ortopédicas e que me levaram ao dr. Luís Gouveia, o dentista mais moderno do Funchal, com consultório no 7º andar do prédio da AEG e vista para a Sé.

Lembro-me de que era um 7º andar por subir aqueles lances de escada já que a minha mãe, embora fosse moderna o suficiente para financiar o dentista, continuava a ser do Laranjal e tinha medo de andar de elevador. Podíamos ficar ali presos e, isso, dava-lhe falta de ar. Sei que foi a primeira vez que vi a cidade de um lugar tão alto e também sei que, de cada vez que lá ia, tentava acalmar-me antes do médico começar a esburacar os dentes sem anestesia. Os meus gritos ouviam-se de certeza por todo o prédio e envergonhavam a minha mãe, dava a impressão que tinha criado não uma miúda doce, mas um animal selvagem.

O que a minha mãe não conseguia perceber é que eu era já de outra geração, que não se conformava com a dor, que não a aceitava como uma fatalidade e não percebia o motivo do doutor poupar na anestesia. O mundo estava a ficar mais complexo e já não se resolvia apenas com analgésicos.