Crónicas

Desobediência Civil

1. Livro: nas duas últimas semanas, entre o COVID, a situação na Ucrânia e os outros afazeres pessoais, entre os quais o ser o Uber de serviço da família (como tão bem define, o meu bom amigo Francisco, o trabalho de chofer que realizamos com a família) li com prazer “Conservadorismo: A luta por uma tradição”, de Edmund Fawcet. Uma análise histórica, ou como o autor o define, um ensaio histórico, que nos leva numa viagem ao pensamento conservador. Fawcet é um liberal confesso, mas primeiro é um estudioso da história das ideias, conseguindo, neste fantástico livro, “ler” o pensamento conservador, sem qualquer tipo de reserva. Aconselho vivamente.

2. Henry David Thoreau, foi um abolicionista americano, que escreveu um dos mais importantes livros de sempre. Uma obra que devia morar nas mesas-de-cabeceira de todas as casas: “A Desobediência Civil”, escrito em 1849.

Thoreau defende que a consciência está acima dos ditames das leis. Critica as instituições e políticas sociais americanas, principalmente a escravidão e a Guerra Mexicano-Americana, e deixa as bases do que considera ser a necessidade de resistir, contra o que está errado, numa base de decisão individual.

Para Thoreau o governo raramente é útil e detém o poder apoiado numa maioria, sendo esta a representação do grupo mais forte, e não porque sustentado no ponto de vista mais legítimo. A primeira obrigação das pessoas é fazer o que elas acreditam ser o certo e não seguir o que é ditado pela maioria. Quando um governo é injusto, as pessoas devem recusar-se seguir as suas determinações. Ninguém é obrigado a dedicar a sua vida a eliminar os males do mundo, mas há um imperativo moral de recusar participar neles. Isso inclui recusar fazer parte de uma instituição injusta, em que se pode transformar um governo.

O pensador duvida da eficácia reformista quando esta sai de dentro da governança, argumentando que votar não pode ser tudo, porque de alcance limitado. A participação cidadã é de enorme importância.

Obviamente que os tempos são outros. Mas a possibilidade da desobediência civil está sempre em cima da mesa.

Passemos a uma possível definição, para que a questão fique mais clara, e consideremos a desobediência civil como a recusa activa e não violenta de aceitar aquilo que os governos determinam. Ou seja, aquilo que considerado injusto deve ser combatido, nem que isso leve à ilegalidade, ao não cumprimento da lei.

A desobediência civil, quando assumida por muitos, causa claras perturbações, concentra a atenção e descredibiliza quem governa, enquanto força o debate com o objectivo de provocar mudanças fundamentais no todo social e na realidade onde vivemos. A desobediência civil não precisa ser extremista, nem deve recorrer à violência. Todos podemos ser activistas. Pequenas acções individuais podem levar a outras maiores, servindo de inspiração, para os que podem não ter a certeza, sobre o modo como canalizar as suas preocupações. Tudo isto, por sua vez, pode ajudar a estabelecer o caminho para uma maior compreensão do todo levando às necessárias mudanças.

São inúmeros os exemplos de desobediência civil: a luta das mulheres inglesas pelo direito ao voto, a marcha do sal de Gandhi, a luta contra a segregação nos EUA, etc.

A recusa dos madeirenses em cumprir com as resoluções governamentais, que exigem que se mostre, à entrada dos estabelecimentos, certificados de vacinação e/ou testes, é um acto de desobediência civil espontâneo.

Com isto, mostram os madeirenses, ser um povo maduro que distingue o que é justo do injusto, do que faz sentido do que não tem sentido nenhum.

3. Não se falando muito nisso, o primeiro país ocupado por Moscovo, foi a Bielorrússia. Está ocupado por forças locais que servem de suporte ao regime ilegal e antidemocrático de Lukashenko e pelas Forças Armadas Soviéticas, perdão, Russas. Foi por aí que as hordas invasoras moscovitas entraram e descem na direcção de Kyiv (forma correcta de escrever o nome da cidade ucraniana, Kiev é o nome em russo). O presidente bielorrusso é um fantoche que faz o que Putin manda. Um ditador que não tem o seu povo do seu lado e que se presta a tudo em troca de protecção.

Em 2020 escrevi nestas páginas: “um dia Vladimir Putin chegou ao poder na Rússia e voltou a querer fazer desta uma potência imperial. Recuperou o criador do fascismo cristão, Ivan Ilyn, desenterrou a Eurásia e iniciou o seu combate sem tréguas à democracia, tal qual a conhecemos”. No final de Janeiro (dia 31) voltei ao assunto e errei, ao não considerar como possível que Putin fosse tão longe. No resto estava e estou certo. E já, na semana anterior, a 24 tinha aflorado o assunto.

Na Ucrânia, Putin, decidiu saltar um dos degraus que a decência implica. “Ultima ratio regum”, era uma frase que Luís XIV mandava gravar nos canhões do seu exército. Pretendia com isto dizer que o argumento final dos Reis, era o recurso às armas. Eram tantos os argumentos que ainda podiam ter sido usados.

Nenhuma das razões de Putin pega. A maioria da população do Donbass era, em 2014, marginalmente, de origem ucraniana. Hoje não será assim, porque com a ocupação russa de Donetsk e Luhansk — porque foi isso que aconteceu — os ucranianos fugiram para o outro lado.

Há povos que não têm memória, outros pouca, mas os ucranianos não esquecem. Nos anos 30, os soviéticos/russos, cometeram um dos maiores massacres da história, deixando morrer à fome cerca de 6 milhões de ucranianos. Foi o Holodomor.

A conversa de que a Ucrânia é russa, é puro revisionismo histórico. A Ucrânia é mesmo mais antiga do que a Rússia. O Rus de Kiev (Rus é uma palavra de origem nórdica que pode significar “remador” ou mesmo “sueco” e que remete para a origem viking de Kyiv) formou-se no século IX. A fundação da cidade vem do século V. Moscovo nem existia em nenhum dos dois momentos. Por casamento, integrou o Grão-Ducado da Lituânia durante dois séculos e, depois, andou de mão em mão entre polacos, russos e teutónicos, até ter declarado a sua independência, quando a Rússia se retira da I Grande Guerra, depois da revolução de Outubro.

Alegar que se invade um país para o desarmar e desnazificar, é das coisas mais absurdas que se usaram até hoje para justificar este “viva la muerte” decretado por Putin. O desarmamento, face à desproporção de meios, é um absurdo. E a desnazificação, quando Zelensky é judeu é, tão só, ridículo.

Não há nada que justifique isto, a não ser a loucura de um fascista, que quer o ressurgir do império russo. Para Putin a maior tragédia do século XX foi a queda da União Soviética. Ter países democráticos, ou em vias de o serem, nas suas fronteiras, assusta-o. Tem medo que a democracia se pegue ao seu país. Tem medo que os russos sejam contaminados pelo exemplo da liberdade e se tornem exigentes.

4. E tudo isto induz ao medo. Depois da pandemia, chega o medo da guerra, o medo do nuclear. Eu já vivi este medo. O medo dos blocos. Ocidente de um lado e URSS do outro. A Guerra Fria. Nasci no ano da crise dos mísseis em Cuba. A Primavera de Praga. Assisti ao desastre que foi a descolonização portuguesa e às diversas guerras civis que se seguiram nos novos países. À fome na Etiópia, à guerra na Somália, Afeganistão, Jugoslávia, à queda do Muro de Berlim que levou à derrocada da URSS. A este medo estou habituado. O medo é terrível se nos deixarmos dominar por ele. Mas muitas das vezes é o que nos faz avançar. A UE nasceu devido ao medo de uma nova guerra em solo europeu. Foi um dos maiores avanços civilizacionais da humanidade. Nós não morremos de amor pelos espanhóis, os franceses não morrem de amor por ninguém, os suecos e os dinamarqueses tratam-se com superioridade, os checos odeiam os eslovacos e vice-versa, os italianos do norte não podem com os do sul e “versa-vice”, os austríacos sentem-se superiores aos alemães porque já foram um império e os alemães têm história recente, etc. O que nos uniu foi o medo. O medo de que estas coisas potenciassem ou desaguassem em conflitos armados. Claro que, depois, tivemos o bónus das relações comerciais, de os países mais pujantes contribuírem com mais, ajudando os menos desenvolvidos (sim, eu sei que Portugal nisto não é exemplo, mas conheci outro Portugal miserável), de as divergências se começarem a atenuar.

Este medo já o conheço.