Crónicas

O carinho

A demência ganha quase sempre a todos os meus esforços, é como lutar contra uma maldição poderosa e fora do meu alcance

A minha tia acenou da cadeira e sorriu, estava num dia bom, foi mais simples. Ficámos os três sentados a conversar, ainda lhe gritei ao ouvido que fazia 90 anos, mas não percebeu, ouve cada vez menos e a demência leva, todos os dias, um pouco mais do que lhe resta de discernimento. E ainda assim o dia foi bom, até mesmo quando mostrou mais interesse em dobrar o papel de embrulho, em arrumar a mesa. Não olhou sequer para os presentes.

E custa, custa sempre um bocado. Não é por mal, eu sei e há anos que tento silenciar o desapontamento. A demência ganha quase sempre a todos os meus esforços, é como lutar contra uma maldição poderosa e fora do meu alcance. A minha tia não deu pelo aniversário, não deu pela visita, nem pelas prendas e não nos reconheceu. E pediu ao meu irmão que fosse ver se eu estava a chegar.

Eu estava ali, mesmo ao lado, de mão dada a ouvir as conversas que, tal como tudo o resto, são cada vez menos coerentes. Não é bonito, não é compensador e, nos dias maus, fica pior. Nem a minha mão, à qual se agarra com força, lhe traz paz. Nesses dias não podemos ficar sossegados a conversar, a partilhar aquela espécie de cumplicidade que nos une para lá das coisas racionais. Afinal é a tia Conceição.

A tia mais excessiva, tão capaz de nos tirar do sério para, no minuto seguinte, correr até ao fim do mundo para nos ver felizes. Era complicada, de feitio torcido, mas perdoei-lhe tudo. As desfeitas, os excessos, agora tento não me desiludir quando não me reconhece, nem que seja por escassos minutos. Prefiro guardar o momento em que quis dividir o jantar, não queria comer sozinha. “Então e vocês? Não vou comer sozinha.”

E a tia da nossa infância, da nossa vida toda ainda está ali, nesse desejo de partilhar, de dar. Não dura muito, depressa se perde numa ladainha confusa, mas, naqueles escassos instantes, é a pessoa que conhecemos e, quando acontece, salva a visita e o dia, dá gosto voltar, até faz parecer menos mal. Menos mal que está calma, menos mal que parece bem.

Não sei por quanto tempo mais será possível ficarmos os três sentados a conversar. A demência é um predador implacável, traga tudo: a memória e a dignidade. E nós não temos outro tratamento a não ser estar ali, a dividir o que ainda não foi levado: o carinho que nos fez sobrinhos daquela senhora velhinha.