O bom, o mau e o funcionário
O Natal assenta num paradoxo pleno de intenção. O nascimento de quem não tem lar é festejado em todos os lares
O Miguel foi eleito Presidente da Câmara de Caminha. Num ato visionário, o Miguel entregou 300 mil euros a uma empresa para arrendar um edifício que ainda não estava construído. O Miguel prometeu que seria um projeto revolucionário. Passaram-se dois anos e a construção ainda não começou. Entretanto, o Miguel foi constituído arguido em dois processos-crime. Perante a evidente competência, o Miguel foi convidado para secretário de estado do primeiro-ministro. Convidado a explicar o adiantamento de dinheiro, o Miguel disse que estava a ser perseguido por ser de Caminha. O Miguel acha que somos parvos. O Miguel continua a merecer a confiança do primeiro-ministro. O Miguel demitiu-se, antes de ser demitido.
O bom: Centro Luís de Camões
O Natal assenta num paradoxo pleno de intenção. O nascimento de quem não tem lar é festejado em todos os lares. Essa alegoria, para além de inspiradora, convoca-nos à ação. A festa do nascimento é, pois, um desafio lançado aos que têm lar para dar a mão aos que, por alguma razão, não têm. Não como um mero dever natalício, mas como uma obrigação perene, que se renova a cada Natal. Então, com o aproximar de nova Festa, há instituições que nos vêm à memória. O Centro Luís de Camões é uma delas, especialmente pela louvável iniciativa que, todos os anos, recolhe brinquedos para entregar às crianças que, de outra forma, não os receberiam no Natal. A recolha de brinquedos, usados ou novos, decorrerá até ao dia 2 de Dezembro e a entrega pode ser feita diretamente nas instalações do Centro Luís de Camões junto ao Bairro do Hospital. A intervenção do Centro não se reduz a esta época, muito menos a esta campanha, mas há nesta iniciativa uma sensação de urgência e de candura que não deixa espaço para a indiferença. É um convite ao compromisso com os outros e uma oportunidade para, também nós, recomeçarmos. Afinal, como escreveu Tolentino Mendonça, para haver Natal é preciso recordar que a vida começa e recomeça, e tudo isso é nascimento – logo, Natal.
O mau: As eleições brasileiras
Por cá, tornou-se lugar comum fazer das últimas eleições brasileiras uma escolha entre o bálsamo democrático de Lula e o liberalismo alucinado de Bolsonaro. Como se a vitória de um fosse a salvação do país perante o triunfo do outro. Não era, nem foi. Lula e Bolsonaro são faces da mesma moeda, ambos personagens de um país grande dilacerado por políticos pequenos. Da mesma forma que a vitória de Bolsonaro seria perigosa para a democracia, o triunfo de Lula será perigoso para o funcionamento das instituições democráticas, basta recordar o escândalo do Mensalão. Poderíamos, é certo, dissecar qual dos candidatos representaria um mal menor. Estaríamos, no entanto, a perder de vista a questão de fundo. Nestas eleições, o Brasil festejou a eleição de um presidente, mas assistiu, impávido, à degradação total do seu sistema democrático. A começar pela indigestão pós-eleitoral de Bolsonaro. Se há chão comum sobre o qual assenta uma democracia é o reconhecimento, pelo derrotado, da legitimidade do vencedor. Primeiro com Trump, e agora por Bolsonaro, a suspeita de fraude eleitoral tornou-se o mantra dos derrotados. Não há democracia que resista à contínua erosão da legitimidade eleitoral, até porque a repetida recusa dos resultados pressupõe uma desconsideração da própria eleição. Daí à sua dispensa é um ápice. A degradação continuou com a contaminação da política pela religião. Desta feita por Lula. O candidato da esquerda popular, o operário tornado presidente, agradeceu primeiro a Deus e dedicou-lhe a parte inicial do seu discurso de vitória. Não está em causa a fé de Lula, é óbvio, mas a sua aparente disponibilidade para, tal como fez o evangélico Bolsonaro, usar a religião como meio de angariação de apoio político. No final do dia, dizem os vencedores que o Brasil voltou. Eu diria que o país, e os seus problemas, são os mesmos e nunca desapareceram.
O funcionário: Paulo Raimundo
Paulo Raimundo é o secretário-geral comunista que se segue. O momento da sucessão encapsula, na perfeição, a natureza claustrofóbica e opaca do PCP. Em primeiro lugar tenho, por teimosia confessa, dificuldade em compreender as homenagens que se prestaram a Jerónimo de Sousa na hora da saída. Jerónimo liderou, durante 18 anos, um partido que, a certa altura da história, rejeitou a importância de eleições em Portugal, imaginou uma geringonça que deu em maioria absoluta do PS e continua a não condenar a invasão russa da Ucrânia. A Jerónimo reconheço-lhe, apenas, coerência na defesa de um ideal que justificou líderes sanguinários, campos de concentração e a morte de milhões de pessoas como mal necessário no caminho para uma sociedade mais justa. Por isso, a entrada em cena de Paulo Raimundo não surpreende. Desde logo, porque o novo secretário-geral foi indicado. No PCP não há processo eleitoral público, não há campanha eleitoral, oposição interna ou listas alternativas. Um deserto democrático. Primeiro é anunciado pelo Comité Central e depois será “eleito”. Por mais que se queira fazer de Paulo Raimundo um operário, padeiro, carpinteiro e pescador, e a sua biografia oficial bem tentou, a profissão do novo secretário-geral é funcionário partidário - há mais de 30 anos. A mesma profissão do que 95% dos membros do Comité Central que o escolheu. Isso diz muito sobre o aquário dogmático em que o PCP se tornou.