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PSD avança com projecto de revisão da Constituição, oito anos após chumbar proposta da Madeira

Luís Montenegro, actual líder do partido, apresenta hoje a sua proposta aos conselheiros nacionais

Foto RODRIGO ANTUNES/LUSA
Foto RODRIGO ANTUNES/LUSA

A direção do PSD vai apresentar hoje ao Conselho Nacional o projeto de revisão constitucional do partido, e o líder social-democrata já se mostrou disponível para "acertar e concertar" com o PS a viabilização de algumas propostas.

O PSD ainda não divulgou publicamente propostas concretas do projeto que vai entregar na Assembleia da República, mas o vice-presidente António Leitão Amaro indicou na quinta-feira que o partido quer uma "modernização dos direitos fundamentais", o reforço da autonomia regional e "afinamentos à organização política e a alguns elementos de organização do Estado".

De acordo com o dirigente, os sociais-democratas não vão apresentar "um projeto de reforma cirúrgico", mas sim "um projeto diferenciador", que está a ser coordenado pelo ex-ministro Miguel Poiares Maduro.

Na segunda-feira, o presidente do PSD disse estar "totalmente disponível" para "acertar e concertar" com o PS a viabilização de "algumas" alterações à Constituição, depois de terminar o prazo para apresentação de projetos.

Luís Montenegro disse estar "disponível para colaborar em algumas temáticas que têm sido realçadas pelo Presidente da República, do ponto de vista de aprimorar o texto constitucional face a algumas circunstâncias que têm envolvido os metadados e, da própria conceção das circunstâncias em que pode ser decretado o Estado de Emergência, por razões sanitárias".

Esta reunião extraordinária do Conselho Nacional - órgão máximo do partido entre congressos - foi anunciada na semana passada e vai decorrer em Lisboa, com início previsto para as 21:00. Da ordem de trabalhos constam dois pontos, análise da situação política e o projeto de revisão constitucional.

Na quinta-feira, o vice-presidente António Leitão Amaro e o secretário-geral Hugo Soares estiveram reunidos com a bancada parlamentar mas, de acordo com relatos feitos à Lusa, não foram apresentadas normas concretas do projeto de revisão constitucional que o partido irá entregar no parlamento até sexta-feira, mas apenas princípios orientadores -- como o "primado da pessoa humana", a vontade de ter uma Constituição "reformista e moderna" ou a necessidade de reforçar "as autonomias regionais ou a coesão territorial".

No mesmo dia, o PS anunciou que vai apresentar um projeto de revisão constitucional para consolidar e alargar "direitos fundamentais", cujos princípios base serão apresentados na reunião da Comissão Política agendada para hoje e que vai decorrer ao mesmo tempo que o Conselho Nacional do PSD.

O PS incluirá também no seu projeto a questão do acesso a dados de comunicações eletrónicas - os chamados metadados - por parte das forças de segurança em processos de investigação criminal e a lei de bases de emergência sanitária, temas que foram abordados entre o primeiro-ministro, António Costa, e o presidente do PSD.

O Chega abriu um processo de revisão constitucional com a entrega no parlamento um projeto de revisão constitucional que foi admitido em 12 de outubro. Segundo a Constituição da República, "apresentado um projeto de revisão constitucional, quaisquer outros terão de ser apresentados no prazo de trinta dias", devendo o período terminar na sexta-feira.

Além do Chega, do PSD e do PS, também a Iniciativa Liberal indicou que vai apresentar um projeto para alterar a Lei Fundamental.

A anterior direção do PSD, liderada por Rui Rio, apresentou publicamente um projeto de revisão da Constituição e de revisão da lei eleitoral no verão do ano passado, que não chegou a entregar no parlamento devido, primeiro, à dissolução da Assembleia da República e, depois, por se estar em campanha interna para a presidência do partido.

O que propunham Passos Coelho e Rui Rio na revisão da lei fundamental

O Conselho Nacional do PSD debate hoje o projeto de revisão constitucional da direção de Luís Montenegro, depois de os textos elaborados pelos ex-presidentes Rui Rio e Passos Coelho nunca terem chegado a ser votados, embora por razões diferentes.

Em setembro de 2010, o PSD de Pedro Passos Coelho avançou com um projeto de revisão constitucional abrangente -- alterava 76 dos 296 artigos da Constituição, revogava 25 e acrescentava quatro -- e, apesar de ter sido recebido com muitas críticas à esquerda, acabou por levar os restantes partidos com assento parlamentar a apresentarem propostas.

No entanto, devido à dissolução do parlamento em abril de 2011, a comissão de revisão da Constituição acabou suspensa em março -- a discussão ainda ia no artigo 35.º - e o processo não foi novamente retomado pelo Governo PSD/CDS-PP que se seguiu, num período em que o país esteve sob intervenção externa da 'troika'.

O PSD propunha então, por exemplo, retirar da Constituição a expressão "sem justa causa" na parte relativa à proibição dos despedimentos, substituindo-a por "razões legalmente atendíveis", bem como excluir a expressão "tendencialmente gratuito" no que respeita ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e pôr fim à obrigação do Estado de "estabelecer progressivamente a gratuitidade de todos os graus de ensino".

Aumentar o mandato presidencial de cinco para seis anos e a legislatura de quatro para cinco sessões legislativas, alargar as competências do Presidente da República e criar o Conselho Superior da República eram outras das propostas do PSD.

Esse Conselho seria um órgão de consulta obrigatória para efeitos de nomeação do procurador geral da República, dos membros da direção de entidades administrativas independentes e de gestores públicos e teria também como missão receber e controlar as declarações de rendimentos dos titulares de funções políticas e de outros cargos públicos.

Em 2010, os sociais-democratas pretendiam ainda retirar da Constituição o artigo que condiciona o "efeito vinculativo" dos referendos a uma participação eleitoral superior a 50 por cento dos eleitores inscritos e introduzir na Lei Fundamental a criação de regiões piloto, admitindo ainda o fim do serviço público de televisão e rádio.

Nos meses de reuniões que se seguiram, PSD e PS até convergiram pelo menos num ponto, mas que nunca chegou a ser votado e que voltou à ordem do dia uma década mais tarde, devido à pandemia de covid-19: os dois partidos manifestaram um princípio de acordo para restringir a liberdade dos portadores de doenças graves contagiosas.

Em 2014, os deputados do PSD eleitos pela Madeira entregaram um projeto de revisão constitucional, chumbado por unanimidade (incluindo pela sua bancada), e só em 2021, já sob a liderança de Rui Rio, o PSD voltaria a anunciar publicamente a intenção de alterar a Lei Fundamental.

Em julho do ano passado foram apresentadas as linhas gerais do anteprojeto do PSD, que foi coordenado pelo ex-líder parlamentar Paulo Mota Pinto, e que deveria ter sido entregue no parlamento na sessão legislativa seguinte, o que não aconteceu devido ao chumbo do Orçamento do Estado e à dissolução da Assembleia.

Rui Rio ainda manifestou intenção de formalizar a sua entrega no parlamento na atual legislatura, em maio, em plena campanha interna, mas um dos candidatos à liderança do PSD, o atual presidente, Luís Montenegro, opôs-se.

Ainda assim, o articulado do anteprojeto chegou a ser enviado aos deputados e, em mais de 60 páginas, anunciava querer alterar 127 dos 296 artigos da Constituição, eliminar mais de 30 e reorganizar capítulos inteiros da Lei Fundamental.

As principais alterações passavam pela redução do limite máximo de deputados de 230 para 215, a introdução da limitação de mandatos para todos os cargos políticos (incluindo deputados), a alteração da duração das legislaturas de quatro para cinco anos e dos mandatos do Presidente da República de cinco para seis (mantendo-se a possibilidade de dois consecutivos), numa proposta que reforçava os poderes do chefe de Estado, que passaria a marcar a data de todas as eleições, autárquicas incluídas.

Neste texto, propunha-se a introdução de "um limite plurianual de endividamento público" na elaboração do Orçamento do Estado e a possibilidade de ser decretado o estado de sítio ou emergência por razões de saúde pública, em termos a fixar numa lei de emergência sanitária.

Ainda para resolver problemas jurídicos colocados durante a pandemia, incluía-se na lista de razões que permitem a privação de liberdade o confinamento ou internamento por razões de saúde pública "decretado ou confirmado por autoridade judicial competente".

A direção de Rio queria ainda fixar na Constituição que as leis sobre regiões administrativas exigiam uma aprovação por maioria de dois terços no parlamento (mantendo-se a obrigatoriedade de referendo) e substituir, no artigo relativo à liberdade de associação, a proibição de organizações "que perfilhem a ideologia fascista" por "que perfilhem ideologias totalitárias".

Mantinha-se inalterado quer o preâmbulo, quer o artigo da Constituição relativo ao direito à proteção da saúde - que gerou polémica num debate pré-eleitoral entre o líder do PS, António Costa, e Rui Rio -, continuando a Constituição a referir que o SNS é "tendencialmente gratuito".

Já na educação, os sociais-democratas queriam acrescentar o ensino secundário "universal, obrigatório e gratuito" (até agora apenas está inscrita na Constituição essa obrigação para o ensino básico), bem como a criação de "um sistema público" de educação pré-escolar.

Na organização política, introduzia-se a possibilidade de se determinar como sanção para crimes cometidos por titulares de cargos políticos a inelegibilidade para cargos e que o Presidente da República passasse a nomear o governador do Banco de Portugal, os presidentes das entidades reguladoras e a designar dois juízes do Tribunal Constitucional (retirados aos atualmente indicados pelo parlamento).

Este texto alterava ainda alguns prazos eleitorais - diminuindo de seis para três meses o período em que é vedada a dissolução da AR - e introduzia na Constituição a possibilidade de não deputados integrarem comissões parlamentares de inquérito ou outras com competências na área da transparência e ética.

A proibição de "nomeações definitivas por governos de gestão", a alteração da composição dos Conselhos Superiores do Ministério Público e da Magistratura (com maioria de não-magistrados) e a possibilidade de coincidência de referendos com eleições (acabando a obrigação de participação mínima de metade dos eleitores recenseados para ser vinculativo) eram outras das alterações propostas.

Na quinta-feira, a direção do PSD assumiu estar a preparar um projeto de revisão constitucional a entregar no parlamento na sequência do processo desencadeado pela iniciativa já formalizada pelo Chega, e que está a ser trabalhado por uma equipa coordenada pelo professor universitário e antigo ministro Miguel Poiares Maduro.

O projeto do PSD só deverá ser conhecido no final da próxima semana, depois de debatido e votado na Comissão Política e Conselho Nacional do partido, com reuniões marcadas para a próxima quinta-feira.