Crónicas

O Jardim e a sua natureza

FOTOGRAMAS

O autor da imagem que hoje nos surge é Aloísio César de Bettencourt, importante fotógrafo no panorama madeirense do período que vai desde 1872 a 1895. No pequeno volume da coleção Madeira – Memórias Fotográficas dedicado ao autor, o qual data de 2018, é referido que este colabora com Jacinto Aníbal de Freitas “no primeiro jornal ilustrado feito na Madeira, o Aurora de Domingo”, e que no âmbito dessa colaboração, que perdura pelo menos até 1868, gere um atelier fotográfico no então mercado de S. João, “onde atualmente se encontra o Teatro Municipal Baltazar Dias.”

Uma vez que a zona do atual Jardim Municipal era então uma “vista” habitual para Bettencourt, o contraste da imagem da cerca do extinto convento de S. Francisco e do terreno entre esta e a Praça da Constituição com aquela do jardim inaugurado em 1885, terá porventura estado na origem desta e outras capturas do mesmo pelo fotógrafo.

Ao circular pelo centro do Funchal, o Jardim, as suas grandes árvores e plantas que me parecem sempre densas e exuberantes, evocam-me, de modo não muito consciente, a presença de uma natureza algo selvagem em ambiente urbano, como se aqueles elementos vegetais tivessem origens mais remotas do que todos os outros elementos da cidade. Naturalmente, não é o caso. E de acordo com o Elucidário Madeirense, é a 21 de fevereiro de 1878 que a Câmara Municipal do Funchal nomeia uma comissão de vereadores que fica incumbida, sob superintendência do Governador Civil, de estabelecer um jardim naquela zona, o qual é inaugurado a 1885, recebendo luz elétrica já depois desta imagem ter sido produzida, a 21 de março de 1902.

A prova de que esta ideia algo difusa de uma natureza original que precede a mão do homem é refutada por esta fotografia, é a presença de uma muito ordenada e ainda baixa vegetação que o fotógrafo regista a partir do ponto de vista que para ele terá sido comum no período em que geria o seu atelier fotográfico: do mar para a serra, (vendo-se ao fundo a rua Ivens). Além de fotógrafo, Aloíso Bettencourt foi ainda curtidor, gravador, ourives, desenhador na Direcção de Obras Públicas do Distrito do Funchal, e produtor de aguardente de cana, fundando em 1883 uma fábrica que está na génese da atual Fábrica de Mel de Cana do Ribeiro Seco. Não é aparentemente por isso que cessa de fotografar, gesto do qual esta imagem é também prova, assim como o é da singular presença de um homem que, sentado num banco de jardim, encara placidamente a lente, encarando-nos a nós, por consequência. Qual desconhecido fantasma bem definido na superfície do papel, nada podemos dizer sobre si ou a sua presença ali – por exemplo, trata-se de uma encenação ou do registo de um momento previamente observado pelo fotógrafo? – a não ser algo semelhante àquilo que Roland Barthes diz no início da sua magistral e recorrentemente citada obra sobre fotografia, A Câmara Clara. O escritor francês referia que numa certa ocasião foi dar com uma fotografia do último irmão de Napoleão Bonaparte, reagindo com espanto ao formular para si próprio que estava a ver os olhos que viram o imperador. Ora, é se não com espanto pelo menos com emoção que olhamos hoje para estes olhos que nos encaram, sabendo apenas que pertenciam a esse anónimo hoje tornado espetro visível pela objetiva de Bettencourt, por terem sido os olhos que viram o então recente Jardim Municipal e provavelmente não se espantaram com a exuberância da sua natureza mas sim com a domesticação desta pelo homem (seu) contemporâneo.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.