Sociedade

A vida é feita de emoções, ou então, não seria vida.

Muitas delas (as mais fortes), devem ser partilhadas, bem desembuchadas, antes que o fogo chegue ao rastilho, que o conduzirá à pólvora acumulada, provocando expulsão no seu habitat, ou seja dentro do peito. Outras, guardamo-las no baú de recordações, anichado dentro de nós, que pela vida fora poderão emergir ou não, pois muitas vezes a sensibilidade que, primaveras após primaveras, mais os invernos da vida, nos vão criando, fazem sair à luz do dia, algo que os anos verdes de nossa vivência, se mantiveram no escuro.

Uma insignificante (ou talvez não) recordação, que me veio à luz da mente, lembrou-me aquele dia, numa das ruas movimentadas da nossa cidade, quando eu por ali caminhava na minha rotina diária, entre aquela moldura humana.

Entre caras desconhecidas, meias conhecidas e conhecidas, surge uma cara, que pertencia a um corpo do sexo masculino, de aspeto vagabundo, tiques afeminados, que subia a rua, em sentido contrário ao meu caminhar.

Não, não era pessoa estranha à cidade, era uma figura do dia a dia, que muita gente conhecia, mas ninguém reconhecia. Era apenas um “farrapo humano”, malnutrido semblante doentio, encaixado numa vestimenta notoriamente com falta de asseio. Muitas vezes alvo de chacota “humana “, dos menos dotados de bom senso, que proliferam pela cidade.

Naquele dia, eu quase foi obrigado, a mirá-lo de baixo a cima, visto ele ter parado à minha frente, sem eu saber o porquê daquela escolha.

Falou-me assim:

- Olhe senhor, eu sei que sou um parasita, que ando aqui no meio da sociedade, mas sou sobretudo, um ser humano e preciso de comer. Tenho fome, podia dar-me algo para eu matar a fome?

Foi nesse momento, que o mirei melhor.

As suas palavras ditas e, as não ditas, disseram-me muita coisa.

Os seus olhos escuros bem arregalados, a presenciar os meus movimentos, naquela expectativa, do que poderia sair de mim, diziam tudo sem falar.

Despachei-o e, ele num muito obrigado seguiu o seu caminho.

Fiquei meditando nas suas palavras, pensando ao mesmo tempo, que podia ser minha a sua ânsia, se o meu berço tivesse sido o dele.

A semente que cai em terreno fértil, tem a sorte de germinar melhor, do que aquela, que cai em terreno infértil.

A nenhuma semente, lhe é dado o privilégio de escolher, o terreno onde vai cair. No mesmo piso que pisamos, uns tropeçam outros não. A fragilidade está no corpo e não no piso. Há tropeções que atiram os fracos para o charco da sociedade. Uma tábua de salvação, estruturada por essa mesma sociedade, pode ser a libertação de um afogamento em causa.

Prometam e cumpram, que vão limpar a “lama” da cidade, libertando, aqueles que nela estão atolados, dando-lhe uma oportunidade de salvação. E, na oportunidade, do cumprimento desta promessa, ficaria a nossa cidade, de rosto lavado, para regozijo da sua população, mais os estrangeiros que a visitam.

José Miguel Alves