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Querido, Mudei a Laurissilva!

A Decoração – sendo, é certo, um mundo de ideias atrevidas e originais – aplica-se sobretudo a interioRES

Quando os primeiros povoadores chegaram ao Paraíso (e foi ao Paraíso que chegaram, ou não teriam chamado Adão e Eva às primeiras crianças nascidas na Madeira), reza a lenda que atearam fogo à floresta. A terra de onde tinham partido estava desflorestada e exausta. Matagais, brenhas e charnecas tinham substituído os soutos atlânticos e os bosques mediterrâneos. De tal sorte que hoje, para termos um vislumbre do que foi o coberto vegetal antigo do Portugal continental, é preciso mergulhar nas serranias do Gerês ou contemplar, de longe, a encosta Sul da Arrábida. Na Madeira temos ainda o extraordinário privilégio de viver aos pés do que restou da floresta primitiva e de nela passear longamente quando nos apetece. Levou-nos algum tempo a perceber que era preciso protegê-la.

O interesse que tenho pelo património arquitectónico não me impede de compreender aqueles para quem um edifício com mais de duzentos anos pode ser enfeitado com alumínios e tinta plástica. O que não consigo compreender são aqueles outros para quem um património natural com milhões de anos (sublinho: milhões de anos), como é o caso da floresta Laurissilva, pode ser enfeitado com valetas, muros e pavimentos em betão armado. A Laurissilva é uma relíquia do Terciário que abriga espécies vegetais e animais únicas à escala planetária, e foi classificada em 1999 como Património Mundial da UNESCO. Esta classificação parece, todavia, não impedir alguns decoradores de querer fazer com ela um reality show – uma espécie de “Querido, Mudei a Laurissilva!”. O último episódio – que ainda não acabou – é dedicado à estrada das Ginjas.

Pergunto-lhes: porque não recuperar apenas o caminho Real n.º 28, repondo o antigo pavimento permeável em pedra basáltica? Por que não fazer dele um percurso pedonal garantindo o eventual acesso de viaturas de emergência? Para quê abrir duas faixas de rodagem, cada uma com 2m de largura? Para quê ladeá-las com valetas ou guias em betão? Para quê os troços em betuminoso? E para quê fazer revestimentos em betão projectado com malhasol e pregagens? (Betão projectado com malhasol e pregagens? Na floresta Laurissilva? Devo ter lido mal.…)

Caros decoradores da Laurissilva – irmãos de infortúnio! – já não somos a horda incendiária de Zarco, nem queremos, com uma inabalável fé e uma grande espada, impor a gentes estranhas o nosso Rei e o nosso Deus. Preferimos, hoje, neste lugar ameno que descobrimos, viver pacatamente, “vendendo quartos”, assistindo aos reality shows da TVI e estendendo a mão a Bruxelas. Perdemos a fé e o ideal? Não sei, mas o mais importante é não perder o juízo! Permitam-me, portanto, que vos deixe aqui uma sugestão: a decoração – sendo, é certo, um mundo de ideias atrevidas e originais – aplica-se sobretudo a interiores. Ora, se o propósito é ver lauráceas ao volante do automóvel, porque não esquecer a estrada das Ginjas e decorar as paredes do túnel da Encumeada com o motivo “folha de loureiro” que está tão em voga, este ano, no Pinterest?